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22 agosto 2020

O arco sob a lua

Por Leandro Radrak

(Este conto se passa na Era dos Dragões, muito antes da Era de Rashidi )


Ônix levou a pata à boca e a lambeu de modo despreocupado, passando-a em seguida no rosto felino. Era um gato peculiar. Um animal feito da mesma pedra que lhe dava o nome. Sua pele era completamente preta, lisa e brilhante, dando ao animal um aspecto mágico. Seus olhos ostentavam um verde intenso e emanavam ansiedade e astúcia.
Ele ignorava seu companheiro mal humorado, que o observava de cima, bufando. Um dragão de ébano que Ônix vira nascer e ajudara a criar, porém, tinha receio, o veria morrer preso nas teias da vingança.
– Estou perdendo meu tempo... – rosnou o dragão ao seu lado, tirando os olhos do felino para encarar o horizonte.
Distantes, nuvens pesadas açoitavam o solo com relâmpagos mudos. Centenas de seres alados se digladiavam, soprando fogo, gelo, energia pura ou líquidos diversos. Também invocavam feitiços ancestrais, comandando os elementais e pintando no horizonte um colorido quadro de caos e destruição.
– Seu inimigo não está lá. – resmungou o gato, assumindo uma pose austera.
– Não ainda...
– Que tal uma história, meu bom Sukemarantus? Algo para acalmar sua ansiedade? Tenho algo na ponta da língua que combina com a guerra de estupidez épica que vemos à nossa frente. Algo que faz frente a tal paisagem de morte entre nossos irmãos. – sugeriu Ônix, com tom maroto.
– Tenho escolha? Vejo que é por isso que você me mantém aqui.
O gato se espreguiçou, saltou para uma rocha mais alta e encarou o companheiro. Tinha um sorriso vitorioso entre os bigodes.
– Juro que um dia eu o engulo. – rosnou o dragão.
– Você poderia tentar, mas creio que seria indigesto se eu assumisse minha forma draconica dentro de você...
– Por que um gato? Podemos nos transformar em qualquer coisa, mas você insiste nisso. O que vê nessas criaturas? – era uma pergunta que Sukemarantus sempre fazia.
– Eles são fofinhos...
Silêncio.
– Meu conto... – Ônix sorriu para o amigo, então continuou. – Começa no reino de Karea, em uma cidadela de nome peculiar...
***
A Vila da Flecha era um local que, apesar de pequeno, era conhecido em todo o reino. O nome, nenhuma surpresa, dava-se pelos seus talentosos arqueiros.
O local abrigava cerca de uma centena de humanos. Pouco mais de trinta construções cercavam a praça onde repousava o túmulo de um herói por eles venerado.
Porém, naquele momento, o herói morto estava esquecido.
As construções eram ruínas.
Os humanos, cadáveres.
Os poucos sobreviventes corriam para tentar salvar algo de suas antigas vidas. Andavam em meio à sujeira e aos odores nauseantes, engolindo lágrimas de desespero, procurando por algo em que se apoiar. Procurando por qualquer coisa que acendesse sua esperança.
Entre eles estavam os Duncan. Pai e Filho. Um havia acabado de enterrar uma esposa e duas filhas. O outro era novo demais para entender o que realmente acontecera.
Mas foi exatamente ele quem encontrou a esperança que procuravam.
Foi esse jovem que ouviu o miado baixo sob os escombros e, com a ajuda do pai e mais três homens, resgatou o felino que ali estava preso.
Um gato bem peculiar, o qual não precisa de descrição, imagino.
O jovem agarrou o bichano de ônix nos braços e não houve quem o convencesse a largá-lo. Assim, tornei-me o mascote dos sobreviventes e viajei com eles para a capital, onde recomeçariam suas vidas.
Dois anos se passaram velozes, marcados por guerras e morte. A Vila da Flecha não foi reconstruída por medo de que aquele que a atacou retornasse.
Calt Duncan começou a instruir o filho no uso do arco. E ali, vendo sua habilidade, decidi finalmente me pronunciar.
– Sua habilidade com o arco me impressiona, Lorde Duncan. Já o usou em combate antes? – comentei a esmo.
A criança sorriu para mim. O pai permaneceu pasmo por alguns minutos, observando-me.
– Convenhamos... – murmurei, saltando para uma cadeira próxima. – Para um gato feito de pedra, falar não é algo tão extraordinário.
– Você nunca falou antes... – ele me disse.
A criança riu com vontade, ainda mais fascinada com seu bicho de estimação e achando graça da cara do pai.
– Nunca tive motivo para falar.
– O Xino é especial, papai. – explicou o garoto.
Xino... Sabe que gostei do nome que o garoto me dera? Acho que ele nunca percebeu que era Ônix ao contrário.
– Ainda aguardo uma resposta, meu senhor. – continuei. – Já usou o arco em combate?
– Sim. Várias vezes.
– Já peço desculpas antecipadamente, mas gostaria de perguntar... – encarei-o – Você teve coragem de usá-lo contra o dragão que destruiu a Vila da Flecha?
O homem desconcertou-se. Encarou-me com vergonha, depois procurou refúgio no filho para, finalmente, baixar a cabeça e me responder em tom melancólico.
– Sim, eu tive. Mas minhas flechas se quebraram nas escamas negras daquele maldito. Foi inútil.
– Então você teve coragem de preparar a flecha, puxá-la no arco, mirar e disparar contra aquele ser que carrega o hálito da morte?
– Zomba de mim, maldito? – gritou ele, chutando a cadeira onde eu estava.
– Longe de mim zombar de sua coragem, meu senhor. – expliquei, saltando para o chão enquanto a cadeira se espatifava atrás de mim. – Poucos conseguem atacar um monstro daqueles.
Ele calou-se.
– E se os deuses lhe dessem um arco que carregaria suas flechas com a morte, dando a você o poder de matar qualquer dragão?
– Eu os caçaria... – respondeu ele, colocando as mãos sobre o filho que desejava proteger.
– No auge da Lua Cheia, a porta de sua prisão se abrirá. Qualquer homem poderá encontrá-lo se mergulhar no sangue de todos os dragões assassinados, mas somente aquele de alma livre de mortes poderá empunhá-lo novamente. – recitei a profecia antiga em tom profético, então revelei: – Esse arco existe. A profecia ecoa nos quatro cantos do mundo, em idiomas diversos, procurando por ouvidos que acreditem nela, por alguém que deseje encontrar esse artefato para empunhá-lo uma vez mais.
– Livre de mortes... – repetiu ele. – Desculpe, não serei eu a empunhá-lo.
– A profecia é mais antiga do que os homens. Tenho certeza, qualquer um que nunca tenha matado um dragão pode empunhar tal arco.
Duncan riu. Havia percebido que conversava com um gato de ônix sobre a hipótese de empunhar um arco que matava dragões.
– Eu devo minha vida a você, meu senhor. – expliquei. – Se quiser este arco, juro procurar por seu paradeiro e retornar sempre que encontrar uma notícia ou pista.
Ele me observou. A sinceridade de minhas palavras o convencia.
– Você poderá proteger vilas como a sua. – encerrei.
Ele hesitou, mas naquela noite eu parti.
E cinco anos se passaram.
***
– O arco de Urian? – perguntou o dragão, deixando de assistir a batalha no horizonte. – Por isso você sumiu?
Ônix assentiu, deitando-se com as patas esticadas, em posição de esfinge.
– Você o encontrou? – Sukemarantus se mostrava impaciente como de costume.
Silêncio. Alguns trovões ecoaram baixo, lembrando o som de ondas contra rochas. Distante, um dragão perdeu a asa e começou a despencar rumo ao solo.
– Eu sempre soube onde o arco estava. – revelou o felino.
– Como?
– Não importa...
– Continue então, maldito. – rosnou o dragão. – Continue...
– Quando retornei e vi os olhos de Duncan, percebi o quanto eu o havia mudado. Não havia dúvidas de que ele seguiria minhas pistas... Afinal, eu era sua esperança.
***
Duncan deixou o filho, agora um jovem de olhar destemido, na casa de primos distantes e me seguiu ouvindo os relatos de minha longa jornada.
Nosso objetivo era o Vale Desconhecido, uma cratera de dimensões alarmantes no centro do continente. Uma selva densa, no fundo de precipícios que homens comuns não ousam escalar. Chegar até a borda desse vale e observar o verde que se estendia em seu fundo como um lago de árvores foi fácil. Descer até ele e esquivar-se das criaturas que ali vivem foi mais complicado.
O arco daquele homem disparou diversas vezes e suas flechas provaram-se mortais. Wyverns, homens-largartos e répteis gigantes tiveram corpos perfurados e tombaram. Ao longo de nossa viagem, vendo aquele homem arrancar flechas dos abatidos para reusá-las, eu entendi que minha escolha fora correta.
Não direi que minha fé no humano permaneceu intacta. Duncan adoeceu em meio à selva, teve febre alta e delirou. Fez com que este gato de pedra negra jurasse que protegeria seu filho. Amaldiçoou-se por partir em busca de uma lenda. Arrependeu-se por desejar vingança pela morte dos amigos e da sua família.
Por dias buscamos refúgio em uma gruta rasa. Eu cuidei dele como pude. Trouxe-lhe comida e água, mas não o curei. Permaneci oculto, escondendo minha essência e minha magia para que os verdadeiros guardiões não nos encontrassem.
Enfim o herói se recuperou. Bastou uma frase para que seu arrependimento fosse substituído por determinação:
– Os deuses o mantém vivo porque abençoam sua jornada. – anunciei, observando aqueles olhos escuros.
Paramos de andar quando restava um dia de caminhada até nosso destino. Aguardamos o auge da Lua Cheia, como mandava a profecia. Expliquei a ele o caminho, anunciei que não o acompanharia e pedi que ele tomasse cuidado.
– Seja furtivo. Tenha cautela. Não hesite. – ordenei como um pai que aconselha o filho em sua primeira caçada.
– E se houver um dragão? – indagou ele.
– Não tenha dúvidas de que haverá. Mas bastará pegar o arco e atirar uma flecha.
– Se eu morrer...
– Eu cuidarei de seu filho. – prometi. – Eu juro.
Assim eu o deixei. Um herói com o coração determinado e a coragem inabalável.
***
O gato cessou a narrativa e encarou o dragão de ébano. Tinha aquele sorriso maroto no focinho, nitidamente provocando o amigo.
Sukemarantus engoliu a irritação e dirigiu sua atenção à batalha que seus semelhantes travavam. Seus olhos vermelhos procuravam por uma silhueta prateada no meio do conflito. Se visse qualquer indício de que seu maior inimigo, o assassino de seu pai, havia entrado no campo de batalha, deixaria o gato de ônix falando sozinho e partiria para o combate.
– Por que você não diz logo que o arco está de posse do seu herói? – indagou ele.
– Impaciência, este é seu nome. – desabafou o felino. – Cale-se e ouça. Talvez aprenda algo, meu caro. Logo você vai entender que a vingança nos enfraquece.
O olhar de reprovação do dragão foi o suficiente para Ônix entender que o estava perdendo.
– Duncan seguiu meus conselhos... – continuou ele. – E, no auge da Lua Cheia, encontrou o local de descanso do arco de Urian. Nosso herói não sabia, mas eu o seguia de perto, oculto como só um felino sabe fazer...
***
O herói seguiu o caminho indicado, abrindo trilhas até encontrar e subir uma extensa formação rochosa. Com o arco nas costas, ele galgou espaço entre galhos e cipós, ignorando uma cobra e chegando até uma pedra que se estendia sobre um lago de águas calmas.
No auge da Lua Cheia, a porta de sua prisão se abrirá, dizia a profecia. Duncan arriscou dois passos sobre ela e, na ponta, esticou o corpo para observar a queda, dez metros abaixo de si. A Lua Cheia regia o centro do firmamento, refletindo perfeitamente no lago. Só assim ele pode vê-lo: Um tênue brilho vermelho no centro daquele reflexo circular. Um brilho que ganhava força e tingia a lua de vermelho.
– Qualquer homem poderá encontrá-lo se mergulhar no sangue de todos os dragões assassinados... – disse para si com um sorriso animado.
Olhou mais uma vez para o reflexo que se tingia de vermelho e recuou alguns passos, sumindo na escuridão.
Então retornou em um salto magnífico. O corpo desenhou um arco perfeito - braços estendidos como se guiassem seu voo - e mergulhou, atingindo em cheio o seu alvo. A Lua desenhada no lago se contorceu em ondas diversas enquanto o homem sumia nas águas profundas.
Seu corpo afundou rapidamente impulsionado por fortes batidas de pernas. As mãos estendidas abriram os dedos com ansiedade, os olhos não deixavam seu alvo: o fascinante brilho vermelho, que tomava forma a cada metro que ele submergia.
Tinha que alcançá-lo.
Então ele sentiu o toque do artefato. O borrão rubro tomou a forma curva da madeira, de pontas retorcidas como chifres, envergados e mantidos por uma fina corda.
Era o formato de um arco. O arco. Lendário e magnífico como a profecia descrevia.
O reflexo da Lua mal deixara de se contorcer pela agressão sofrida quando Duncan emergiu. A boca aberta puxou o desejado ar com força, desesperado pela vida que trazia. A cabeça ficou leve e ele quase desmaiou. Mas o poder pulsante em sua mão o manteve desperto.
Fascinado, o herói trouxe o artefato mágico à frente de seus olhos e o fitou orgulhoso. O brilho vermelho variou lentamente, tornando-se púrpura e retornando ao tom original.
Com braçadas fortes, mas cansadas, ele alcançou a margem e se levantou. O belo arco era todo talhado com letras gastas de uma Era perdida. A madeira que o compunha parecia tão resistente quanto a corda de metal maleável que prendia suas extremidades.
Nunca havia visto nada parecido.
O guardião o observava sem pressa. Deixou com que o arqueiro recuperasse o fôlego e, quando julgou apropriado, revelou sua presença.
– No auge da Lua Cheia, a porta de sua prisão estará aberta. Qualquer homem poderá encontrá-lo se mergulhar no sangue de todos os dragões assassinados, mas somente aquele de alma livre de mortes poderá libertá-lo e empunhá-lo novamente. – recitou o guardião.
– Quem... – Duncan esboçou uma pergunta, pasmando ao se deparar com a figura que o observava.
O guardião poderia assumir muitas formas, mas escolheu a mais próxima da compreensão do invasor: a humana. Ao menos era a mais semelhante que poderia chegar dela. Sua natureza o deixava transparente como a água, mas como ela, sua superfície refletia a luz, destacando as formas de seu contorno.
– Você conquistou o direito de empunhar esta arma cujo nome foi esquecido. – declarou o guardião. Sua expressão trazia perplexidade e desconfiança. Há décadas não via um humano, quanto mais um que viesse atrás do arco. De algum modo aquele mortal havia descoberto o caminho para o lago e as condições para resgatar o artefato. Agora a arma pertencia a ele. – Diga-me seu nome.
– Calt Duncan, da Vila da Flecha, do reino de Karea. Mas isso não importa, pois minha cidade foi destruída por um dragão negro. E quem é você? –  indagou, mesmo conhecendo a resposta.
O lago atrás deles explodiu como se um meteoro o atingisse. A força liberada o derrubou, enquanto parte do lago caia sobre nós como uma chuva torrencial que ainda demoraria a cessar.
Ele se colocou em pé. Barrono rosto e olhos temerosos. Sua mão tateou a aljava a procura de uma flecha e, quando a sentiu entre os dedos, o herói hesitou, perguntando-se do que o guardião seria capaz.
Silêncio. Exceto pela chuva que ainda caía.
– Você procura por vingança. – afirmou o dragão. Os olhos do homem não desmentiram a acusação. Mas, quando pensei que eles entrariam em combate, o guardião me surpreendeu: – Escute uma história, sobre o antigo portador desta arma.
Duncan assentiu.
– Durante a guerra dos dragões, um homem chamado Urian perdeu seus dois filhos, ainda pequenos. Ele mesmo sobreviveu por pouco tendo o ataque custado uma de suas pernas. – disse ele. – Alguns anos depois este homem ressurgiu como um campeão entre os humanos. Ele trazia um arco, este arco, que logo se tornou conhecido por causar a morte quase instantânea de qualquer dragão que fosse atingido. Urian cavalgava pelo campo de batalha preso à cela de um cavalo negro. Ele atirava suas flechas rubras para o ar, levando à morte os seres ancestrais que fossem atingidos. E foram muitos. Os dragões se depararam com o medo. Eles viram seus companheiros atingidos morrerem em meio a dores alucinantes, causados por uma simples e minúscula flecha.
O dragão de água encarou o arco com pesar. O homem também encarava o artefato, mas escutava com atenção.
– Essa dor que sentiam alimentava Urian, que se deliciava com cada alma destruída. Cada inimigo abatido era um pedaço da vingança concretizada. Sequer fazia distinção entre suas vítimas. Todo dragão era um inimigo. Não importava o que dissessem, os répteis alados eram criaturas a serem caçadas e mortas.
– Foram dias sombrios... Dias em que seres imortais temeram um humano aleijado. Sem escolha, os mais sábios se reuniram para discutir o que fazer com o matador de dragões. Sabiam que o dragão que matara seus filhos e arrancara sua perna já havia sido morto pelo próprio caçador. A cabeça, inclusive, estava exposta na entrada da cidade onde Urian havia morado. Os dragões que tentaram dialogar foram assassinados e os que tentaram enfrentá-lo falharam. O arco o protegia da magia draconiana e suas flechas o protegiam do combate. Nem os dragões capazes de assumir muitas formas conseguiram executá-lo, pois o artefato brilhava em tom rubro na proximidade deles, dando tempo para a flecha mortal ser preparada e desferida.
Duncan observou o brilho vermelho no artefato. Olhou em volta e nada viu. Então, encarou o guardião novamente. O arco reagia na presença daquele ser.
– Foram meses de tocaias, espionagens e tentativas frustradas de matá-lo. – continuou o dragão. – O destino parecia querer que ele sobrevivesse e a sorte, ou a intervenção divina, o salvou inúmeras vezes. Matá-lo parecia uma tarefa impossível e nossa raça parecia condenada. Então, quase dois anos depois, os dragões desistiram e passaram a evitá-lo o mais que podiam. Trocaram suas moradas por esconderijos. A luz, pelas sombras.
– Não por muito tempo... – rosnou Duncan. – Hoje eles lutam entre si novamente. Hoje eles ainda atacam nossas cidades e devoram nossos filhos.
– Enfim, chegou o dia que a guerra acabou. – o guardião ignorou-o. – Mas isso não encerrou a caçada de Urian, que renegou reis e escorraçou sábios que se aliavam aos dragões em troca de conhecimento. Ordenaram então que o herói fosse preso e o arco tomado. Mas o povo o venerava e a ordem foi ignorada. Ninguém via, ou desejava ver, que aquele homem representava apenas ódio. Eram cegos ao fato de que o herói perdera sua alma e se tornara o próprio instinto da vingança.
– Por anos ele caçou. Por anos, os dragões se esconderam na esperança que a idade cuidasse do inimigo cruel. Contudo não fora a idade a matá-lo. Seu fim se deu neste lago, em um combate curto e inesperado. Ele e seus seguidores pararam aqui para descansar e o brilho do arco revelou minha presença.
– Sua? – perguntou Duncan, sentindo a pena da flecha entre os dedos. Estava pronto para levá-la ao arco e dispará-la.
– Depois de procurar ao seu redor, Urian deduziu que o lago escondia a entrada para uma caverna que seria meu refúgio. Então ele e seus seguidores mergulharam nestas águas para procurar tal entrada. Mas a caverna nunca existiu. Como pode ver, sou um dragão d’água... O único de minha espécie. O próprio lago é minha morada e meu corpo. Eu, conhecendo o carrasco, não hesitei em afogá-lo com minhas próprias mãos. Ele e seus companheiros sequer puderam reagir.
– Covarde...
– Sim. Eu sinto vergonha disso, não tenha dúvidas. Mas não me arrependo.  – concordou o guardião, encarando-o com sua expressão translúcida. – De posse do arco, reuni outros de minha raça para tentar destruí-lo. Mas isto se provou impossível para nós. Então decidimos aprisioná-lo em minha morada, utilizando nossas magias mais poderosas para escondê-lo, e mesmo assim, fomos obrigados a escolher condições para que o arco pudesse ser recuperado...
– Esta é sua história, então. Assim surgiu a profecia.
– Sim, humano. Esta é a minha história. Este item não possui nome e, antes de Urian, não possuía um relato sequer. O arco esteve aprisionado desde então e agora ele pertence a você.
– Então poderei dar continuidade ao que Urian fez. Mas do jeito certo. – declarou Duncan. – Eu não serei cegado pelo ódio e protegerei minha espécie com esta arma feita pelos deuses.
A chuva que o guardião criara cessou.
Ele encarou o homem por alguns segundos. Já havia notado a flecha pronta.
– É um ciclo, herói dos humanos. Um ciclo inevitável. Talvez você pudesse rompê-lo e não ser cegado pelo ódio. Talvez... Mas não posso arriscar.
O guardião tinha muitas formas, mas exibiu a que julgava verdadeira. Ele abriu suas asas e deixou o corpo crescer, alimentado por toda a água que o cercava. O pescoço se alongou e o rosto assumiu o formato reptiliano. A cauda balançou, rompendo-se nas árvores e molhando o que tocava.
Ameaçado, Duncan preparou a flecha e tentou puxar a corda do arco. Contudo ela permaneceu imóvel. O guerreiro urrou colocando toda sua força para envergar o arco, cortando os dedos, mas sem conseguir armar sua flecha. O arco o recusava.
Eu já sabia que isto aconteceria, pois menti ao dizer que a profecia antecedia os homens. O próprio Urian era um humano. Assim, qualquer humano poderia remover o arco do lago, mas somente um que não tivesse derramado sangue, poderia empunhá-lo.
Notando que era inútil, Duncan recuou confuso. O guardião olhou-o de cima quando seu longo pescoço atingiu o tamanho natural.
– Eu matei Urian por sorte, humano. – declarou ele com voz gutural. Tinha um pesar sincero na voz. – Como guardião, eu jurei não permitir que o arco deixasse o lago para saciar a vingança novamente. Por isso, ordeno que o abandone e vá embora.
Duncan olhou em volta como se procurasse apoio. Como se me procurasse. Mas nada encontrou. Não havia escapatória. Então ele rendeu-se aos instintos mais básicos... e correu.
O guardião bateu suas asas de água erguendo o corpo no ar e, desenhando um arco no céu, mergulhou sobre o herói para abocanhar sua vida em uma enxurrada violenta, que desfez sua forma dracônica no impacto com o solo. Quando se recompôs, Calt estava dentro dele.
Afogava-se impotente, assassinado de modo covarde. Não que isso me revolte, pois sempre entendi o guardião. Sua honra havia sido enterrada junto de Urian quando ele o afogou do mesmo modo.
– Dou a você a mesma morte de Urian, ainda que não seja merecida, e confinarei novamente a ruína de meu povo. Espero que me perdoe quando estiver com seus entes queridos e perceber que o impedi de ser dominado pelo ódio. – declarou o dragão d’água. – O arco voltará para sua prisão, sob a lua. Os dias sombrios, de medo e fuga, não voltarão enquanto eu viver. Eu...
Só então ele notou. Duncan estava morto, mas não carregava o arco consigo.
– Onde está o arco? – gritou para o cadáver.
Era tarde. Eu já me distanciava rumo ao Oeste, levando comigo o arco de Urian. O dragão do lago nunca me encontraria. Sequer saberia onde procurar.
O guardião derrubou árvores e rochas em seu acesso de fúria. Ele urrou para os céus, amaldiçoando-se. E pediu perdão aos deuses, temendo o futuro.
***
– Ladrão... – bufou Sukemarantus, com um sorriso de canto no seu rosto escamoso.
– Sou um servo dos deuses! – o felino se fez de ofendido. – Devolvi aos homens o presente vindo dos céus. Ladrão... Que absurdo.
– O que fez com o arco? – indagou o amigo.
– Você não prestou atenção na história? Não é óbvio? – o gato saltou, cravando as pequenas garras nas escamas de ébano, escalando até a cabeça do dragão. Então encarou o horizonte.
Sukemarantus tornou a assistir a guerra, pensativo. Já havia percebido que os dragões estavam tombando mais rapidamente, mas só então prestou atenção.
Distante, um irmão vermelho, feito de fogo, arqueou-se sem ser atacado e caiu girando em torno de si. Outro dragão, cuja pele brilhava como uma esmeralda tombou do mesmo modo.
– O arco está lá... – concluiu.
– Sim, eu não só o devolvi aos humanos, como criei um herói para eles. Lian Duncan o empunha em honra ao pai. Desde a primeira vez que vi o garoto eu soube que seria ele. Eu soube que deveria entregar o arco a ele.
– Como você soube?
– Algumas coisas não se podem explicar. Eu senti, apenas isso. – Ônix retomou o semblante austero. Os dragões debandavam no horizonte, temendo por suas vidas. – Lian será o instrumento que fará os dragões se unirem novamente e os lembrará de que não são deuses. É hora dos dragões deixarem de lutar e voltarem a se esconder, meu amigo. Esse mundo não nos pertence. Nossos irmãos já deviam ter aprendido isso. O fim da guerra começa hoje. Seja por nossa rendição, seja por nossa morte.
– Minha guerra só acabará quando eu devorar o coração de prata do maldito Darantas!
– Vingança, vingança... – o gato saltou da cabeça draconiana, pousando no chão de modo elegante. – Veja a lição que minha história traz! A vingança nos faz de tolos, nos enfraquece, permitindo que sejamos manipulados. Lembre-se do que houve com Calt Duncan, Sukemarantus, e se pergunte se eu não o estou manipulando também. Aprenda com Urian e com nosso herói antes que seja você aquele consumido pelo ódio e obsessão.
O dragão não teve resposta. Decidiu se calar e observar os irmãos que fugiam desesperados.
Enfim o combate havia acabado.
O quadro de caos e destruição havia se transformado em um tributo à deusa da Morte.
O arco de Urian, o assassino de dragões, estava de volta ao mundo dos homens.

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