Desta água não beberei
Quinze minutos de caminhada entre as matas e um quilometro e meio depois de sua partida, Tom se deparou com aquilo que um dia foi um riacho. Havia vários corpos humanos dentro do riacho. Alguns destes ainda nem estavam em estado de decomposição, já outros. Uma pedra estava fazendo com que os corpos que ali batessem não ultrapassassem a área, o que resultou num cemitério aquático.
A pedra sempre esteve ali, já os corpos não.
A pedra sempre esteve ali, já os corpos não.
- Acho que teremos que mudar o nome deste lugar de Pedacinho do Vida para Pedacinhos da Morte - brincou.
Foi então que percebeu que se encontrava em sérios problemas, isso porque toda a água que ele tinha acesso vinha deste local, e uma vez que ela estivesse infectada, ela estaria imprópria para consumo. Aquele riacho era o único lugar da região onde ele poderia se abastecer.
Sabia o que tinha que fazer, remover os corpos da pedra a fim de que a água pudesse fluir novamente e assim seu poço também poder receber água limpa. Não gostava da idéia de ter que mexer nos corpos, afinal algum deles ainda poderia estar “vivo”. O serviço sujo tinha que ser feito, quer ele quisesse, quer não.
Apesar de seus 50 anos, Tom não aparentava a idade, isso porque sempre teve uma vida ativa no campo, uma alimentação exemplar, hábitos que o tornou um dos poucos sobreviventes, se não o único, da região. Ele lembrava muito o marinheiro Popeye, não era provido de altura, em compensação tinha músculos de sobra de dar inveja a qualquer jovem freqüentador de academia. Há alguns anos vinha raspando a cabeça, eliminando assim seus últimos fios grisalhos. Tomou esta decisão após um errante ter consigo puxá-lo pelo cabelo.
Pegou sua faca e cortou um galho grosso de uma árvore próxima. De um lado poderia ser usado como uma alavanca, de outro como uma lança improvisada. Com suas mãos calejadas ele tomou a ferramenta e cutucou cada corpo para ver se alguém esboçava alguma reação. Ele poderia ter usado a lança direto na cabeça dos errantes e acabar com esta dúvida, porém ele preferia evitar tal atitude, nunca gostou de ferir ninguém, nem mesmo depois de morto.
A cena dos corpos acumulados no riacho era digna de um dos capítulos da Divina Comédia de Dante Alighiere, mais precisamente durante sua passagem pelo inferno. Alguns estavam inchados, com os olhos saltando a órbita, outros estavam desfigurado como se a carne humana já não fosse mais carne, mas sim plástico deformado e alguns com partes do corpo faltando.
- Que droga, odeio este serviço. De onde vocês vieram? Por que estão aqui? Já sei, estava calor então resolveram tomar um banho de riacho. Aposto uma caixa de cerveja que estou certo.
Quanto o homem foi retirar o primeiro corpo da água, puxando o ser cadavérico pelos pés, algo desagradável aconteceu, as pernas se desprenderam do cadáver. A carne estava se decompondo devido o tempo que permaneceram no local. Tom sabia que apenas com um pedaço de pau e com as mãos não conseguiria removê-los. Tinha que usar algo mais plano, algo como uma grande pá ou uma rede.
De repente um forte barulho chamou sua atenção, dois tiro, e na seqüência mais um e depois nada além do silêncio. Ele olhou na direção do som e ainda segurando as pernas do morto pensou: “O barulho veio daquela direção, da direção de casa”.
LAR, DOCE LAR
Mais que depressa ele recolheu seus objetos, deixando ali apenas o galho e correu cuidadosamente, alguém poderia estar precisando de ajuda ou na pior das hipóteses este alguém poderia estar tentando roubar suas coisas. Ao se aproximar de casa ele pode perceber uma movimentação desagradável, os errantes estavam ali, estavam agitados e isso não era tudo, eles conseguiram de alguma forma invadir seu lar. A porta da frente estava no chão, havia sido arrombada, e por cima dela estavam dois zumbis caídos e imóveis.
- Era o que faltava agora. Como se não bastasse o problema da água, agora isso. E para piorar o barulho dos tiros deve atrair mais algumas dezenas de criaturas pra cá. Tenho que ser rápido.
Sua preocupação não era à toa, afinal todo seu estoque de comida, água, remédios e munição estavam lá dentro. Agora a suspeita de roubo já não era tão obvia, isso porque os zumbis aos poucos começaram a vagar cada um para um lado, e isso só podia significar uma coisa, não havia mais qualquer ser vivo naquele local.
Por ser um homem do campo, Tom aprendeu a usar a natureza a seu favor, desde criança já sabia fazer armadilhas para capturar pássaros e outros seres que acabaram virando churrasco. O tempo e os errantes só fez esta habilidade ficar ainda melhor. Agora ele era praticamente um expert no assunto, sabia criar qualquer tipo de armadilha com os recursos que tinha em mãos. Muitos militares treinados para sobreviver ao extremo teriam inveja de suas habilidades.
- Tenho que atrair o máximo deles para as armadilhas e limpar a área para eu poder entrar em casa, pois não demorará muito para anoitecer.
Assim ele pegou uma pedra do tamanho de um punho, prendeu a respiração, mirou o alvo e jogou. – Headshot – disse dando uma risadinha. O errante ficou procurando quem lhe acertará a cabeça. Não demorou nada até achar o velho que balança os braços chamando sua atenção.
- Ei, qualé, traga alguns amigos para festa também companheiro.
Junto vieram outros quatros zumbis. O som emitido por eles era como o som de cães rosnando prestes a avançar em sua presa. Se por um lado eles eram lentos, por outro eram letais quando estavam em grupo. Era de longe o pior predador que nosso planeta já conheceu. Ao se aproximarem de Tom, que já estava estrategicamente posicionado, então pôde se ouvir algo cortando o ar – fuuuuim – Eles pararam e não conseguiram mais avançar. Isso porque um pedaço de um duro galho envergado acertou em cheio os cinco no peito prendendo-os entre os espinhos pontiagudos. Tom só teve o trabalho de tirar sua faca da bainha, ir por trás de cada um e perfurar suas cabeças.
- Cinco a menos!
Assim aos poucos ele acabou com outros onze errantes que estavam do lado de fora. Agora ele poderia entrar em casa e começar a varredura lá dentro. Ele adentrou a casa, tinha que ser cauteloso nos passos, pois a casa construída há mais de 60 anos denunciava qualquer um emitindo baralhos vindo das longas madeiras do chão. A cada passo um novo barulho – nhéim, nhéim, nhéim – Apesar do barulho Tom também conseguia ouvir as batidas do seu coração. Ele estava suando frio e não sabia se era pelo esforço da última luta ou de medo mesmo. A segunda opção era mais provável. “A lanterna, onde deixei a maldita lanterna?” – pensou. Sabia que não poderia continuar a busca com aquela iluminação. Então ele se lembrou – “na mesa da cozinha, isso mesmo, deixei lá a lanterna”.
Como um gato, movimentou-se lentamente até a mesa e lá estava. Deslocou o dedo polegar pelo botão e um facho de luz cortou a escuridão, iluminando parte do ambiente. Tom então verificou tudo a sua volta iniciando assim sua varredura: - Cozinha, limpo - Sussurrou ainda com a voz tremula.
Com a mão direita empunhou a faca, com a esquerda segurou a lanterna. Ao chegar no quarto viu um corpo caído no chão e dois errantes ajoelhados ao lado devorando o pobre coitado. Colocavam na boca as viceras retiradas do estomagado do rapaz recém morto. O sangue pingando do maxilar das criaturas era tão horrível de se ver quanto ouvir o som dos órgãos da vitima sendo despedaçados, rasgados, mutilados. Aquilo tudo era indescritível. Tom nunca esteve tão perto da morte quanto estava agora. Estava paralisado vendo aquela monstruosidade.
Um dos errantes percebeu que alguém de “diferente” os observara. Lentamente o devorador virou a cabeça e voltou o olhar para Tom. Rapidamente ele pegou sua faca e cravou a lamina em sua têmpora. O segundo errante sem entender direito o que estava acontecendo também conheceu a faca de Tom antes mesmo que pudesse olhar para o rosto dele.
Agora que o lugar estava sem errantes ele pode com calma investigar o corpo daquele rapaz. Com um certo nojo retirou alguns pedaços estraçalhado do intestino de perto do bolso da calça e então verificou se descobria algo.
- Oras, oras, o que temos aqui? Um diário, uma caneta, um isqueiro, alguns remédios e uma foto de uma família feliz. Ao centro uma garotinha que aparentava 8 anos. Parecia uma princesa de tão charmosa. Do lado direito uma linda moça latina de aproximadamente 30 anos e à esquerda o rapaz que ali se encontrava sem vida e sem alguns dos órgãos.
- Vocês pareciam ser felizes. Sinto muito por você meu jovem.
A noite chegara, Tom limpou toda aquela bagunça retirando os corpos de sua casa e arrumou, provisoriamente, a porta. Qualquer coisa era melhor do que deixar seu lar exposto à mata lá fora. Após quase tudo estar no jeito, Tom acendeu o lampião da sala e deu uma lida no diário. Descobriu que o rapaz tinha um nome, era Lenny H. Gordan, pai de Sofia e marido de Maria Mercedes. Eles estavam na estrada já havia um mês desde que sua comunidade foi invadida pelos errantes. A última anotação fora escrita a menos de 48 horas e ali não havia qualquer relato de como se separou da mulher e da filha. Enquanto lia sua lanterna começou a apresentar sinais de que a bateria estava fraca e ele não pode terminar de ler o restante das anotações:
- Acho que é hora de acender os lampiões.
Antes que ele pudesse acender o primeiro lampião, um barulho vindo da cozinha chamou sua atenção. Seu coração quase saiu pela boca. Acendeu o lampião, empunhou sua Magnum e caminhou lentamente para verificar de onde àquele misterioso som estava vindo. A cozinha estava limpa, tirando alguns poucos animais empalhados que faziam parte da decoração, ninguém mais estava naquela instalação.
- CARAMBA, A JANELA DA COZINHA!!!
Por mais velha que as madeira que cobriam a janela da cozinha pudessem ser, também não parecia ter sido dali que veio o estranho barulho. Tom ficou intrigado, não estava louco, sabia que ouviu algo, foi então que ele pensou em uma possibilidade – “será que restou algum errante do lado de fora e ele está querendo entrar?”.
- AAAAAAAAAAAAAHHHHH – gritou Tom com toda sua força.
Tarde de mais. Um errante que estava na parte inferior da casa, abriu o alçapão da cozinha e conseguiu cravar seus dentes de leite abaixo da batata da perna dele. Agora caído no chão ele só pensava em afastar aquela coisa de perto dele. Pegou sua arma, apontou para a cabeça da criatura e puxou o gatilho desesperadamente por várias vezes. O primeiro tiro acertou o ombro daquele pequeno ser, os outros restantes foram todos certeiros na cabeça.
- AI MEU DEUS, MEU DEUS, MEU DEUS. SANGUE, FUI FERIDO!
Olhando para a mordida ele pode ver o tamanho do estrago. A parte inferior traseira de sua perna havia sido estraçalhada. Ali, cravado na carne ainda estava um pequeno e afiado dente canino. A dor era insuportável. Antes de perder a consciência Tom olhou bem para o rosto esburacado daquele zumbi e reconheceu a pequena garota, era Sofia, a menina da foto do diário. Ele apagou.
Fonte: http://mortosfamintosorigem.blogspot.com.br/2012/12/contos-do-apocalipse-zumbi-guerra-pela.html
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