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18 julho 2020

Alma de Dragão


por Leandro Radrak

Muito bem, minha senhora. Sou praticamente um bardo na arte de declamar contos. Deixe-me lhe contar minha história. Ao menos a parte dela que me trouxe aqui. Serei sincero, pois não subestimarei sua astúcia. Quem é subestimaria um deus, não é mesmo? Ouça com atenção, por favor. Depois, deixarei em suas mãos o meu destino.


Cabalia era o nome dado às terras no extremo Sul de Melkearis, além das Cordilheiras do Conflito Eterno. Uma região abandonada pelos humanos e esquecida pelo tempo. Não só pela periculosidade de suas terras, mas também pelos humanos serem o prato principal das criaturas que lá habitam.
Entre tais criaturas, a mais temida era Varsgaltar, um dragão milenar, que veio ao mundo junto com os primeiros dragões e que servira Oberon, na guerra que transformou Radrak em um deus. Uma criatura cruel, responsável pela morte e sofrimento de milhares.
Ao longo de minha existência, minhas palavras, aos meus irmãos, sempre trouxeram a mensagem de que ele deveria ser destruído. Infelizmente, sempre fui ignorado. O motivo, falo abertamente, sempre fora o medo. A dúvida minava a mente de meus irmãos. Não sabiam se poderiam derrotá-lo e, o preço da derrota, parecia aterrorizá-los.
Até os entendo. Varsgaltar era um dragão de éter. Todos nós temos um elemento e suas variações associado a nós. Éramos responsáveis por criar a matéria, antes da nossa migração para este plano.
Um dragão de Areia, Diamante ou Aço acaba por ser, de certo modo, previsível. Sabemos o que esperar ao enfrentar um deles. Mas o que esperar de um dragão cuja essência, diz-se, é responsável por dar forma aos pensamentos e até, segundo os mais ousados, criar a alma?
O que mais instigava o medo de meus irmãos dragões, no entanto, era outra habilidade. Eu já vira Varsgaltar derrotar alguns inimigos e a sensação de que ele sugava as suas almas para si era nítida. Daí sua alcunha: Devorador de Almas. Muitos sabiam disso e, tenho certeza, era isso que os impedia de enfrentá-lo.
Varsgaltar, no entanto, poderia ficar quieto entre os vulcões de Cabalia até o fim do nosso mundo, mas um mago de extremo poder, chamado Rashidi, estava conquistando o Norte e, logo, requisitaria sua ajuda. Rashidi, diziam, poderia controlar os dragões. E se ele controlasse o Devorador de Almas, o destino do continente teria sido selado.
Por isso fui até Cabalia, uma terra desprovida de confortos, a pedido de meus irmãos. Um favor que prestei, mas que ainda não me foi pago. Aguardei por três dias, sentado no alto de um vulcão fedorento, de asas abertas e pescoço ereto, na esperança de que ele notasse minha presença o quanto antes. Eu poderia simplesmente voar até ele, mas isto poderia custar minha vida... e minha alma.
Os vulcões à minha volta cuspiam aos céus e babavam na terra sua saliva vermelho-brilhante, agitados como sempre. O solo, quilômetros a minha volta, estava morto. Os céus, de Norte a Sul, cercam-se de nuvens de fuligem negra que bloqueiam o Sol.
- Ah, lá vem ele. – eu disse aliviado, ao ver o vulto alado se aproximando do Sul. Meus olhos se arregalaram por uma fração de segundos ao perceber que ele estava umas seis vezes maior desde a última vez que eu o vira, séculos atrás, durante a guerra dos dragões.
Ele pousou ao pé do vulcão, esticou o pescoço e me encarou com olhos gananciosos. Sem esperar um pedido mais evidente saltei, deixando meu corpo cair e, com asas abertas plainei até ele, pousando ao seu lado.
– Deuses, como sou pequeno. – eu disse, olhando para cima com admiração. Sua pele escamosa era de um branco leitoso, um pouco transparente, com veios brilhantes que lembram a aurora. Um ser belo, tão belo quanto os mais perigosos predadores de nosso mundo. Ele sorri.
– Onix... O que o traz aqui, velho... – a língua escapou de sua boca, como se eu fosse um prato apetitoso. – amigo...
– Prefiro ser chamado de Xino. – eu disse, curvando-me. – Trago uma mensagem a você, Devorador de Almas.
– E por que eu deveria ouvi-la?
– Em honra aos velhos tempos? Pelas boas risadas ao lado de Sukemarantus? – brinquei, sem extrair sequer um esboço de sorriso. – Ou, talvez, por eu ter sido enviado pelo próprio Radrak?
– Você? – o Devorador riu. – Dentre tantos servos, por que ele mandaria você? E, meu caro... Xino, porque você se importaria com as palavras daquele deus fraco?
– Ora, quem mais viria aqui e retornaria com a alma para casa? – eu disse, travesso, fuçando o solo com as garras.
– Admito que não posso garantir nem isso. – sorriu o dragão gigante..
– O retorno de um inimigo em comum me convenceu a aceitar o risco. – eu disse, encarando-o de modo travesso. Eu precisava esconder meu medo, ou a diversão poderia realmente convencê-lo a me atacar. – Só fico na dúvida se ele é seu inimigo também. Arrisco que sim, pois, segundo as lendas, ele teve controle sobre você e, parece-me, você não gosta de servir a ninguém.
– Oberon? – indagou o Devorador de Almas, deixando escapar um rosnado. Eu sorri em resposta. Ele desconfiou. – Oberon está morto. Radrak e os quatro deram cabo dele.
– Mas sua alma continuou livre, para reencarnar, não? – joguei a isca. Duas afirmações na mesma frase. A verdade, confirmando que Oberon poderia estar de volta, e a sugestão, de que ele poderia devorar sua alma e impedi-lo de retornar para sempre. – Ele retornou à Grinmelken, Devorador de Almas. O nome do bruxo agora é Rashidi. E a mensagem que Radrak pede para eu lhe entregar é: Ele virá atrás de você.
– Apenas isso?
– Não. Radrak também diz que ele dominará você novamente e que você já sabe o que fazer para evitar que isso aconteça. Imagino que você saiba do que se trata.
– Sim, eu sei... Não tenho muito tempo... – resmungou ele, perdendo o olhar no horizonte. Um vulcão explodiu distante e seu trovão reverberou.
Levantei voo de surpresa e anunciei, afastando-me:
– Nada mais tenho a dizer, amigo. O recado está dado. Minha missão se encerrou. Parto antes que você resolva me lanchar!
Assim afastei-me o mais rápido que pude. Não era seguro estender tal conversa, nem mesmo para mim. Ele dissera que não tinha muito tempo. Palavras simples. Mas elas revelavam o que ele iria fazer. Eu precisava me apressar se quisesse ver aquilo de perto.
Por favor, não me julguem. Como o gato, animal que adoro, sou um curioso nato, e não consigo me afastar de um mistério. Além do mais, eu não desperdiçaria a chance de destruir Varsgaltar se ela fosse colocada diante de mim.
***
Voei para o Norte sem descanso, mirando as Planícies Bárbaras, seguindo a fumaça de um vulcão muito maior que os de Cabalia. Ele era conhecido pelo nome de Merotanaffas, graças ao demônio de mesmo nome que os bárbaros e o deus Cabal haviam aprisionado ali. Mas falaremos mais sobre Merotanaffas e os bárbaros que pulam dentro dele mais tarde.
Cheguei à tribo dos Sangue de Fogo na manhã seguinte. Uma das últimas tribos que seguia as tradições do fogo, herdadas da extinta Istrar. Eles veneravam o deus Cabal, enquanto deixavam a vida passar, aos pés do vulcão.
Todos os bárbaros das Planícies consultavam seus xamãs quando uma decisão importante precisava ser tomada. E seus Meros, guerreiros de olhos vermelhos abençoados por Cabal, eram convocados quando espadas habilidosas eram necessárias.
Eram um povo forte, respeitado e temido, contudo, não passavam de um reflexo pálido de um passado glorioso.
Também era um povo supersticioso. Mas, admito, qual não é?
Entrei na vila como se ela me pertencesse. Não na forma de um dragão. Isso arruinaria tudo. Nós, dragões de Grinmelken, podemos assumir a forma que quisermos. Muitos se misturam aos humanos assumindo sua forma, outros viram criaturas diversas. Eu gosto da impressão que um gato causa, por isso sempre assumi esta forma para lidar com eles. Foi assim que comecei a andar entre os Sangue de Fogo.
Não que eu tenha sido recebido com afagos e um pouco de leite. Pelo contrário. Não há gatos nas Planícies, muito menos gatos pretos de pele vítrea e brilhante. A grande maioria nunca havia visto um felino, muito menos um feito de Ônix.
Sentei-me no centro da vila e lambi a pata dianteira, despreocupado. Eles tentaram me enxotar de todo o jeito. Jogaram água, pedras e até me chutaram, descobrindo o quão duro eu era. Por fim um bárbaro de olhos vermelhos decidiu me repartir em dois com sua espada, da qual sabiamente esquivei até que ele se cansasse. Demorou, mas, ao fim do dia, eu estava deitado sobre minhas patas, no centro da aldeia e ninguém mais me incomodava. A xamã viera, me analisara e, desconfiada, decidira que eu não era uma ameaça.
– Ele não pretende nos fazer mal... Mas há algo nele que não gostamos. – disse ela, encarando-me com olhos quase ocultos atrás de pálpebras pesadas. E sim, ela falava por ela e por Cabal. Depois de um resmungo, ela completou: – Quero dois Meros de olho nele, enquanto estiver aqui.
Um dia foi o necessário para ver todos da vila. Meu plano funcionara perfeitamente e minha visita inesperada, bem como ter sobrevivido a todas as tentativas de me expulsarem, causou curiosidade e todos vieram me ver em algum momento do dia. As grávidas inclusive, as quais eram o objeto da minha curiosidade.
Aqui vale uma explicação sobre os Meros que, na minha opinião, é o que há de mais fascinante neles. Desde que o demônio Merotanaffas foi aprisionado no vulcão, o deus Cabal lhes disse que, para mantê-lo assim, um sacrifício deveria ser feito todo ano, no primeiro dia do verão. Assim, desde que o chifrudo fora preso, um Sangue de Fogo salta no vulcão, entregando seu corpo às chamas para que o demônio não saia e destrua o mundo.
Um exagero, admito. No máximo, Merotanaffas destruiria a tribo deles e mais uma dúzia de vilas, antes de ser abatido por algum herói de Rauny, Aisha ou Radrak.
Mas não acaba aí. Cabal prometeu aos Sangue de Fogo que recompensaria aqueles que se sacrificassem, explicando os rituais que a xamã deveria realizar para que isso acontecesse. Então, na semana que antecede o início do Outono, os bárbaros realizam a escolha de quem será sacrificado. Quase sempre, um dos jovens promissores. A escolha é celebrada com festa e os casais copulam na esperança das fêmeas engravidarem. O que geralmente acontece.
Eram essas grávidas que eu desejava conhecer, pois através delas Cabal cumpre sua promessa, colocando em um desses bebês a alma do guerreiro que saltou no vulcão. Sempre, quando o primeiro dia do verão chega, uma das grávidas entra em trabalho de parto. O escolhido para o sacrifício sobe então a montanha, junto de outros Meros, e salta no vulcão, para garantir a prisão do demônio por mais um ano e, ainda, renascer mais forte.
Conveniente, muitos diriam, desacreditando a crença e afirmando que este é apenas um meio de manter os bárbaros saltando para a lava. Contudo, o bebê bárbaro nasce com olhos vermelhos como o fogo, quando isso acontece e somente nesta ocasião. Mais, a criança se lembra de sua vida anterior.
Incrível, não? Você precisa ver um Mero lutando, para ver o que realmente é incrível.
Enfim, havia seis grávidas na aldeia, mas apenas três estavam prestes a ter seus filhos. Uma delas daria a luz ao próximo Mero. Seu filho seria um protetor dos Sangue de Fogo e um dos maiores guerreiros das Planícies.
Isso, se nada interferisse no ritual.
Não demorou até eu encontrar também o bárbaro que saltaria no vulcão dali a alguns dias. Um homem feito apesar da pouca idade. Forte como um touro, de cabelos vermelhos e sardas a lhe manchar o rosto. Tinha um olhar compenetrado e uma ansiedade oculta com certo esforço.
Os dias passaram e no início da tarde do primeiro dia de verão, preciso como uma profecia de Uranus, uma das mulheres entrou em trabalho de parto. Os bárbaros entraram em alvoroço e, pouco tempo depois, os Meros já subiam o Merotanaffas acompanhados do jovem candidato.
A subida se estendeu pela tarde, enquanto a xamã e suas acólitas seguravam dentro da barriga o bebê que desejava conhecer o mundo. Eu me esgueirei como um bom felino pelas cabanas até entrar na cabana-templo de Cabal. Um lugar abafado, com jarras de óleo em chamas e brasas a cercar o local onde a velha xamã ficava. Elas entoavam cânticos antigos, em meio aos gemidos da mãe que sofria.
Do Devorador de Almas ainda não havia sinal algum, o que me fazia duvidar de minha perspicácia. Eu teria apostado que havia decifrado seu plano.
Então uma acólita entrou na cabana e acenou para a velha xamã. A velha enfiou as mãos no meio das brasas e retirou uma trombeta negra. O chiado de sua carne queimando contra o metal quente ecoou, mas ela sequer piscou. Seus olhos leitosos estavam vidrados, em um transe profundo. A velha franzina e frágil levou o metal à boca, encheu os pulmões e soprou. O som ecoou forte e alto, enquanto chamas deixavam o interior do objeto.
Era o sinal para que o bárbaro saltasse.
O rugido feroz então ecoou, reverberando pelas planícies. Tão alto quanto a trombeta que a velha tocara. E o som de grandes asas nos cercou.
Eu sorri. Havia adivinhado o plano de Varsgaltar. Como um manipulador do éter, um criador da matéria que pode dar forma aos pensamentos, ele poderia manipular as almas. Eu tinha certeza de que ele tentaria se fundir à alma do guerreiro quando ele pulasse no vulcão,  renascendo assim como um Mero, dividindo o corpo com a alma do bárbaro. Em pouco tempo ele poderia subjugar a frágil alma humana e, quando resolvesse seu problema com Rashidi, se separaria do corpo e voltaria a viver como antes. Talvez, até mais poderoso por ter sido tocado por Cabal.
Contudo, não se engana um deus. As chances daquilo dar errado eram muitas. Ele poderia ser destruído no processo, pelo próprio Cabal, e o mundo ficaria livre de uma das piores criaturas que nele já viveu.
Corri para a saída e encarei os céus a tempo de ver o Devorador de Almas mergulhar no vulcão, rugindo como uma fera indomada. Encarei novamente o interior da cabana. A grávida estava de pernas abertas, deitada no chão e cercada pelas acólitas, enquanto a xamã entoava com vigor os cânticos antigos, ensinados pelo próprio Cabal.
Aquilo poderia dar errado e o Devorador de Almas seria destruído. Mas também poderia dar certo... O reinado de terror dele poderia não só continuar, mas também se fortalecer. Havia uma chance dele conseguir.
Foi quando a ideia passou pela minha cabeça.
A chance de sucesso dele residia ali, na minha frente, e eu tinha poder mais que suficiente para extingui-la. Bastaria um ato hediondo. O assassinato de um ser indefeso. Ao custo de uma vida eu pouparia, talvez, milhares que sofreriam nas mãos daquele ser, ao longo dos séculos seguintes.
Sabe, eu nunca fui de hesitar quando as oportunidades aparecem na minha frente. E não foi daquela vez que deixei uma delas passar.
***
Fazer o que fiz não foi fácil. Eu permaneci por ali por alguns dias, escondido no topo daquele vulcão, perdido em pensamentos. Ao matar a criança que receberia a alma de Varsgaltar eu havia quebrado a ponte que o traria de volta a este mundo. Eu o havia deixado no limbo, para sempre. Apesar da vitória, eu me senti mal pelo que fiz. Mas o pior foi quando descobri que eu estava errado.
– Você deve responder pelo que fez. – a voz de um irmão veio do meu lado. Tão próxima, que ele pareceu estar dentro de minha mente. – Ônixadran Til’Valtas, você deve responder por ter assassinado um humano. A xamã sabia o que você era e, agora, não só os Meros, mas os guardiões de Istrar também o sabem.
Eu sequer havia sentido a presença deles. Um dragão pode sentir quando outro está próximo, mas falhei feio daquela vez. Talvez por culpa de Darantas – ou Nogard, ele adora esse nome -, um dragão de prata, que sabia esconder sua presença como ninguém. Ele estava ali, na sua forma humana: Um velho corcunda, de ralos cabelos prateados.
A voz, no entanto, não era a dele, mas sim a de Baêrun, dito o “primeiro entre nós” e nomeado “Rei dos Dragões”. Ainda, ao lado dele, estava Emua Peri Racco, o dragão de ouro que pregava na terra a palavra do jovem deus Radrak. Ambos, também estavam utilizando uma forma humana. Não desejavam chamar a atenção dos bárbaros.
Havia também um humano com tamanho muito acima do normal. Ele estava ao lado de Darantas. Sua espada estava brilhante como se houvesse acabado de deixar a forja. Eu a reconheci de imediato e, com isso, soube quem ele era: Wiskuriath, o esmagador de exércitos. Bom nome não? Eu o engoliria de uma só vez, mas é sábio não subestimar um dos últimos Istrars a andar no mundo. Ele deve ter o quê, uns dois mil anos?
– Só vocês? – ironizei. Sempre quis enfrentá-los, um a um, para ver se me sairia bem. Sempre acreditei que poderia derrotar os dragões de prata e ouro. Já Baêrun, parecia improvável. Um dragão de Diamante não é das coisas mais agradáveis de se morder. – Diga-me, sábios irmãos... Qual é a punição para livrar o mundo de uma criatura vil como o Devorador de Almas?
– Radrak é sábio em suas ações. Havia um motivo para manter nosso companheiro desgarrado vivo. – explicou Emua, o dragão de ouro. Sua pele era levemente cobreada, enquanto os olhos brilhavam com um dourado solar. Seus cabelos, fios de ouro, iam até o chão. – Quando você concordou com essa missão...
– Eu não sigo o deus Radrak, amigos. – resmunguei. – Vocês já deviam saber disso. Não confio em alguém com metade da minha idade para guiar minha vida. Nunca escondi isto.
– Você será exilado. – afirmou Baerûn. Ele estava prestes a rosnar. – Wiskuriath está aqui como testemunha do povo bárbaro.
– Quanto tempo ficarei na Ilha dos Dragões, Majestade? – indaguei, com sarcasmo. Aquela criatura era tão rei dos dragões quanto havia sido o primeiro a pisar em Grinmelken. Eu o respeitava tanto quanto seu deus, ou seja, nada.
Ele estendeu a mão e a abriu. Na palma havia uma chave azulada.
– Não... – respondeu ele. – Não será na Ilha. E não haverá tempo para sua prisão. Se, um dia Radrak quiser, ele poderá tirar de lá.
Observei Darantas. Dentre os três, o dragão de prata era o que melhor me entendia. Contudo, ele estava tenso como a corda de um arco, pronto para assumir sua verdadeira forma e me atacar. Passei os olhos nos outros dois e, por fim, peguei a chave.
– Prisão perpétua para um imortal? – olhei para cada um deles. – Por ter feito o que fiz? Não acham que estão exagerando?
– Pelo que fez agora e antes... – A paciência de Baerûn chegou ao fim. Sua voz se elevou, grave e ameaçadora. – Não é a primeira vez, Ônix. Suas ações na Guerra dos Dragões não foram esquecidas. Você trouxe aquele maldito arco de volta. Você mostrou à Sukemarantus o caminho das trevas! Você... Não, Ônix... Chega! Eu avisei antes que um desvio seria a sentença para seu fim. Eu o destruiria, mas Radrak me proíbe de fazê-lo.
– Uma pena... – sorri, sem deixar-me afetar pela presença aterradora que ele emanava. – Seria um bom combate.
– Diga, Uranelai e use a chave como se houvesse uma porta invisível na sua frente. – ordenou o rei dos dragões.
– Uranelai. – eu disse, observando-os. A chave azul brilhou.
Eu poderia tentar fugir. Era bem provável que conseguisse, mas então eu teria todos os dragões de Radrak à minha caça. Para que tanto esforço, quando eu poderia simplesmente escapar de onde quer que eles me colocassem? Prisão perpétua, usando uma chave mágica? Pouco provável. Eu encontraria uma saída, cedo ou tarde.
Então, cravei a chave no ar e a girei. Uma porta surgiu do nada e eu a abri.
Dentro dela eu vi as paredes do Hall principal de um castelo conhecido. O primeiro castelo em que vivi, quando cheguei neste mundo. Admito, o único lugar que eu verdadeiramente chamei de lar.
– Parece confortável. – brinquei, ocultando a nostalgia que me atingiu. – Os moradores de tal lugar se importarão com minha visita?
– Está vazio. – disse Darantas, sorrindo.
– E alguém vai me vigiar? Digo, para eu não fugir de lá?
– Você não vai fugir. – afirmou Baêrun. – Se por algum milagre o fizer, eu o caçarei e o destruirei.
– Nossa... Quase fiquei com medo, majestade. – sorri de volta para eles. – Quase...
– Deixe a chave para fora e entre. – comandou o rei, mais uma vez.
– Tudo bem. – eu disse, antes de entrar na minha prisão. – Mas vocês devem admitir que o mundo será um lugar melhor, sem o Devorador de Almas. Vocês deviam me agradecer.
Os três pararam na frente da porta, observando-me. Eu olhei em minha volta e notei que havia algo errado. Aquele não era o castelo em que eu vivera meus primeiros anos em Grinmelken. Era uma cópia.
– O Devorador não foi destruído. – disse Darantas. – A criança que você matou não era um Mero. Lamento, Xino. Você matou um inocente por nada.
– Não? – e nesse momento, sim, eu fiquei surpreso. Meu coração apertou-se e a culpa reprimida transbordou.
– Não... Uma das grávidas dos Sangue de Fogo estava fora da vila. Ela havia sido resgatada pelos Istrars e eles a traziam de volta, quando ela entrou em trabalho de parto. O próprio Wiskuriath puxou o bebê para fora. – relatou Darantas. – E é uma menina, meu caro. Pela primeira vez, desde que os Meros surgiram, nasce uma mulher abençoada por Cabal.
O bárbaro assentiu, sério como uma rocha.
– O predestinado saltou no vulcão junto com o dragão. – disse o bárbaro. – Apesar de ser uma mulher, ela será um Mero, como os outros. Ela se chamará Ailatan, Alma de Dragão.
Quanto a mim, a boca estava seca e a garganta espessa. Não houve palavras. A imagem do inocente que eu matei vinha no lugar delas.
– Você errou Ônix. – disse Emua, o dragão de ouro. – Que o tempo possa lhe dar a sabedoria e, se um dia o destino tornar a cruzar nossos caminhos, que possa fazê-lo para um bem maior.
– Wiskuriath. Ouça-me! O dragão dentro dela. Você não entende o poder que ele possui. – eu disse. – Um dia ele irá controla-la e, quando isto acontecer...
– Ninguém controla um Mero! – a resposta dele ecoou com uma certeza indiscutível. Não houve diálogo.
– Ao menos diga a ela para pesquisar sobre a criatura dentro dela! – tentei uma última vez. – Ela precisará conhecê-lo. Isso a ajudará quando for a hora. Isso poderá salvar todos vocês.
– Adeus, Ônixadran Til’Valtas.  – declarou Baerûn, fechando a porta na minha cara. Eu pude ouvir claramente o trinco travando e a chave sendo retirada. Então a porta sumiu.
Não demorou muito para eu entender o que haviam feito comigo. Eles não me exilaram do reino ou do continente. Eles haviam me exilado do mundo.
A porta aberta pela chave levava a uma duplicata de um local que seu portador chamaria de lar. Por isso, o castelo onde vivi por tanto tempo. Contudo, este lugar era criado em um outro plano de existência. As janelas ou portas não se abriam por magia ou força bruta.
A única forma de sair, era pela porta principal e, uma vez fechada, só poderia ser aberta por dentro.  Uma vez que a chave estava do lado de fora, com Baerûn, eu parecia estar condenado a viver eternamente aqui.
Ao menos era o que eu pensava, minha senhora, até você aparecer. Agora me diga, senhora Naila. Como este humilde ser poderia servi-la para ganhar, quem sabe um dia, o direito de andar novamente em Grinmelken?

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