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25 outubro 2013

O Soldado da Guarda

França, meses após a “Noite de São Bartolomeu", ocorrido em 24 de agosto do ano de nosso Senhor de 1572. Mais de três mil homens e mulheres foram brutalmente assassinados em uma única noite. O rei Carlos IX, então com 22 anos, influenciado pela rainha-mãe, Catarina de Médici (e quem efetivamente detinha o poder nas mãos), provocou uma selvageria sem limites. Algo entre setenta e cem mil mortes nos meses que se seguiram. A apreensão e o medo dominavam a vida de muitos. Famílias inteiras queriam fugir da violência, mas poucos podiam ajudar. Porém, ainda havia alguns aventureiros:
O senhor Depardieu conduzia um pequeno grupo de homens feridos, mulheres e crianças para um lugar seguro, seguindo em direção à Alemanha, afastando-se da Espanha e tentando transpor os limites do seu país em busca de um lugar seguro. A viagem já durava algo entorno de vinte dias, o sol já estava para se pôr.
– Obrigado por nos trazer em paz até aqui. – disse uma mulher se aproximando. – Sem o senhor por perto, não conseguiríamos chegar até aqui sem problemas.

Depardieu sorriu.
– Após o rio há uma casa em que você poderão ficar durante um tempo até essa loucura terminar, lá há mantimentos e meios de subsistência.
A moça sorriu.
– Como sabia tantos caminhos seguros? Como sabe dessa casa? Por que nos guiou até aqui?
– Muitas perguntas. – respondeu Depardieu sorrindo e desconversando.
– Mas não seria deselegante deixar de respondê-las?
Depardieu suspirou.
– Há cinco anos, – começou a responder. – havia a idéia de que fosse formado um exérito pessoal do rei, uma corporação militar que seria considerada a elite do exército francês, que serviria como escolta pessoal do rei. Então, o soberano real formou um grupo de guardas, cuidadosamente selecionados, incluindo a mim, que passou a ser responsável por sua segurança. Nós, além de exímios espadachins, possuíamos diversas técnicas de combate e estratégias. Éramos cumpridores de missões secretas dentro do território francês e fora dele, até mesmo no novo mundo. Por isso, conheço todo o território da França como a palma da minha mão. Era o mínimo que se deveria esperar de alguém que ocupou o cargo que ocupei.
A moça mostrou-se desconsertada.
– Então o senhor fazia parte da guarda pessoal do rei que ordenou a nossa morte. – disse em tom de tristeza. – Por que não se encontra mais lá?
– Após tantas confusões e contendas, provocadas pela própria rainha-mãe, o melhor que pude fazer foi me afastar. Temia-se falsos inimigos, enxergando verdades inexistentes e mentiras capiciosas, tudo para encobrir tantos problemas latentes. Percebi que a guarda real seria a próxima a entrar na lista de “inimigos reais”, então afastei-me por minha segurança.
– O senhor era um herói. Deve ter sido difícil deixar a tropa por causa de um pressentimento.
– Não foi um “pressentimento”.
– O senhor estava correto em sua desconfiança?
– Meus irmãos de armas foram mortos dois meses depois que me afastei. Às vezes, sinto-me culpado por tê-los deixados para trás. Devia ter insistido...
– Não foi sua culpa...
– É isso que tento me convencer todas as noites.
– Essa traição ocorreu há quanto tempo?
– Dois anos atrás...
– Sente falta?
– Sim...
– E, desde então, tem servido ao seu próximo como aventureiro que é.
Depardieu sorriu novamente.
– Se enxerga dessa forma.
– Não “enxergo”, é a verdade!
Aos poucos, a visão da ponte que cortava o rio e levava para um outro país foi despontando na paisagem. Muitos festejaram. As mulheres sorriam, as crianças pulavam. Muitos dos homens feridos agradeciam a Deus pela travessia segura.
– Bom, – disse a mulher. – é aqui que a viagem termina.
– Foi bom trazê-los até aqui.
A moça aproximou-se rapidamente e lhe deu um beijo, Depardieu não recusou. A moça se afastou devagar.
– Não quer ficar conosco?
– Não, existem outros que precisam de mim.
– Sempre um “herói”?
– Até quando precisar.
O silêncio entre os dois imperou por alguns instantes. Ela quis se aproximar para dar mais outro beijo.
– Huguenotes! – gritou um cavaleiro, ainda distante, de cima da colina.
Depardieu olhou de volta, o fitou. O cavaleiro mostrava-se sozinho sobre o cume da colina.
– É apenas um, ele não pode fazer nada. – disse a mulher.
– Não. – disse Depardieu. – Atravessem a ponte! – gritou sem que entendessem.
Mais cinco cavaleiros despontaram ao lado do primeiro. Todos começaram a correr.
– Corram! – ordenou Depardieu posicionando-se para a batalha. – Covardes nunca andam sozinhos!
Os cavaleiros começaram a descer rapidamente, em direção ao povo despreparado. As mulheres começaram a correr de forma desesperada, carregando as crianças. Alguns homens preferiam reagir e proteger os demais, mesmo que fosse apenas com paus e pedras.
Os inimigos avançaram depressa, parecia que seria o fim. Foi quando ouviu-se um disparo seguido de outro, dois cavaleiros caíram feridos ao chão. Os cavaleiros pararam.
– Vocês têm apenas dois amigos feridos para carregar no caminho de volta. – era Depardieu, deixando a capa de couro que cobria os seus lombos cair. – Escolham!
Os quatro cavaleiros restantes se olharam, então observaram o protetor daqueles “malditos” huguenotes. Depardieu usava um manto azul-escuro cobrindo-o à frente e à retaguarda, com um símbolo bordado em fios dourados e prateados em ambos os lados em forma de cruz. Alguns reconheceram o manto e já recuaram, a capa esvoaçou revelando o que havia por debaixo: no peito, havia uma faixa feita de couro, nela havia pequenas bolsas com projéteis, possivelmente com balas redondas de ferro. Preso à sua cintura, havia um punhal, uma espada, uma espécie de zarabatana e mais duas pistolas, sem contar as duas ainda quentes em cada mão.
Apenas um dos cavaleiros não reconheceu que ele era um remanescente da antiga guarda pessoal do rei, eles não tinham a menor chance. Dois cavaleiros saltaram de suas montarias, apanharam os feridos, colocaram nos lombos dos seus cavalos e partiram. Apenas aquele que não havia reconhecido permaneceu fitando o antigo guarda da elite, mas então, frente à reação dos seus comparsas, deu meia volta e partiu.
Depardieu olhou para os seus protegidos, já estavam do outro lado da ponte, apanhou o manto de couro e partiu em sua direção.
Do outro lado da ponte, todos poderiam se considerar seguros. Agora era apenas preciso seguir para a tal casa secreta em solo estrangeiro no qual eles poderiam recobrar um pouco da dignidade enquanto aquela loucura não terminasse. O tempo passou, e a pequena caravana ainda se recobrava do susto. Talvez fosse melhor esperar só mais alguns minutos para então continuar. O sol já havia se posto. Depardieu olhou para todos, a jornada havia sido longa, o antigo guarda real aproximou-se da moça que havia lhe beijado.
– Que jeito estranho de terminar uma viagem tão longa. – comentou ela em meio a um sorriso.
– O que importa é que ninguém saiu gravemente ferido, de nenhum dos lados.
– O senhor continua servindo à França, guardando os seus filhos, como se um Guarda Real ainda fosse, mesmo após duas traições do rei.
– Ainda tenho a minha palavra, e ela foi dada para proteger o rei, este reino e seu povo. Estou cumprindo isso a todo custo.
A mulher se mostrou ainda mais encantada com aquele homem. A noite se levantava devagar.
– Fique conosco só mais essa noite. – pediu.
– Eu...
Foi quando uma sombra saltou de súbito sobre o antigo guarda.
– Cuidado! – gritou ela.
Era o cavaleiro que não conhecia e nem havia se intimidado frente ao emblema mostrado por Depardieu. O antigo guarda virou-se, apenas para se defender de um ataque covarde com o punhal. Aquele maldito cavaleiro havia se desfeito de todos os seus apetrexos, excetuando o seu punhal, apenas para poder se esgueirar na noite que iniciava, chegar suficientemente perto de Depardieu para poder matá-lo.
O sorrateiro adversário havia se jogado sobre o antigo Guarda Real com o seu punhal descendo de cima para baixo, mirando os seus olhos. Depardieu ergueu o seu braço para se proteger, o fio do aço passou rente ao seu punho, formando um risco de sangue, mas oferecendo resistência. Ambos caíram com o ataque.
A mulher se apavorou, pedindo por ajuda. A lâmina começou a descer devagar, mirando o seu rosto, enquanto Depardieu tentava segurar a todo o custo. Ambos mediam forças.
– Escute! – era Depardieu. – Passamos o rio! Acabou! Chega dessa loucura!
O cavaleiro colocou o peso do seu corpo sobre o punhal, descendo ainda mais a lâmina.
– Pare! – insistiu.
A lâmina já se aproximava dos seus olhos. A mulher estava sem reação. Os demais homens, ao perceberem o embate, começaram a correr na direção dos três. “Eu não quero matar ninguém”, suplicava em seus pensamentos. A sua força já se esgotava, não tinha como resistir mais, ninguém chegaria a tempo para salvá-lo, e a lâmina atravessaria o seu crânio.
Derpardieu reuniu o seu último fôlego, empurrou mais uma vez, afastou-o uns poucos centímetros, puxou a sua pistola presa à sua cintura, disparou à queima-roupa, na altura da barriga de seu pretenso executor.
Tudo pareceu ocorrer de forma lenta naquele instante. O sangue às costas do cavaleiro jorrou no ar, espargindo-se sobre a mulher e Depardieu. Aquele cavaleiro morreu instantaneamente, seu corpo se debruçou sobre o antigo guarda real. O choque e a surpresa tomaram a mente da moça. Depardieu empurrou o corpo para lado e permaneceu imóvel, sem se levantar. Ele não queria ter feito aquilo. Ele não desejava matar ninguém. Estava arrasado...
– Por favor, – repetia Depardieu. – pare...

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