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17 setembro 2013

O Guerreiro de Damasco (Inicio)

 Península Arábica, Damasco, ano do nosso Senhor de 1567.
Todos conhecem a história do grande Califa Hamam iben El-Hashid, o garoto pobre que cresceu nas ruas de Damasco no início do século, vendo o melhor e o pior que o seu país tinha a oferecer. Em como ele viu as ameaças européias tentando marchar em sua direção contra a expansão Otomana, juntando-se às forças de combate contra o inimigo. E como um general, líder direto sob as ordens de Solimão, o Magnífico, viu a sua coragem, inteligência e sabedoria por trás daquele ímpeto jovial. Ele foi um dos melhores guerreiros do seu exército, um exército formado pelos melhores. O general tornar-se-ia Califa, e, Hamam, o seu ajudador. 
Porém tudo deu errado.
– Morte aos bárbaros! – era a frase proferida naquela época pelos húngaros.
Apesar do primeiro Exército de Ataque, conhecido por Rumélios, comandada por este general, sair-se bem, abrindo um caminho vitorioso para os exércitos seguintes, encerrando o destino dos seus adversários em sangue e fogo em apenas duas horas, apesar disso, foi repelido, levando a todos, inclusive o general, o futuro Califa de Damasco, à morte. No entanto, este não deixou de incumbir um homem para carregar o peso, este homem era Hamam iben El-Hashid, o único preparado até então, fosse pelo seu talento nato, fosse pelos ensinos do general.
Era uma tarefa impossível de cumprir. Mas Hamam fez isso parecer fácil, embora nunca tenha sido.
Ele lutava por aquilo em que acreditava, sendo um perfeito representante dos ensinamentos de Maomé e sempre levando o povo para mais perto de Alá. Ou por aquilo que ele acreditava ou por aquilo que deveria ser.
Mas algo de estranho sobreveio: acusaram-no dele ter se tornado um cristão. Acusaram-no de abandonar a sua fé. Ele fora acusado formalmente por causa de um pensamento que proferira uma vez em um devaneio solto ao ar em frente aos demais. O antigo Califa não aceitou tal acusação, apesar das aparências.
Muitos se levantaram a favor, outros, contra. Muitos debates, várias disputas.
A situação, com o tempo, tornou-se incontrolável. Houve um grave conflito, muito sangue fora derramado em vão, porém Hamam, o Califa de Damasco, vendo a situação que se estabelecera, se rendeu às forças militares e religiosas.
O violento combate terminou após a batalha mais improvável que qualquer habitante de Damasco já havia visto. O Califa, em sua rendição, rasgou as suas roupas e vestes em sinal de dor e miséria, jogando cinzas para o alto, desistindo da resistência.
Os homens que o defendiam, incluindo a mim, foram poupados e perdoados, talvez tenham entendido que não podíamos matar um homem com provas infundadas, nossa posição frente à luta era legítima. Por sinal, eu serei o próximo Califa, sinal que também entendem que não terão outra pessoa mais justa para ocupar o cargo.
Por fim, o grande conflito e a histeria que tiveram início com uma falsa acusação, e que exigiu explicações que o califa não poderia dar, se encaminharam para um tipo de final.
No entanto, se a prisão de Hamam traria paz ou restabelecimento a este povo, ou até mesmo à nação, seria uma questão que teria de enfrentar com sabedoria e não podia responder naquele momento.
Mas algo ainda mais importante me aguardava: um julgamento.
Preparei-me nos degraus do prédio onde o homem que mais admirei seria avaliado por suas ações. Deveria de ser eu a pessoa a presidir o julgamento, porém o Sultão enviou seus próprios julgadores para que tivéssemos um contraponto, justo para que fôssemos imparciais, e Hamam iben El-Hashid tivesse um julgamento claro, fosse a pena severa ou não.
A praça em frente ao prédio estava vazia pela manhã, mas os habitantes rederam-se ao acontecimento, mostrando-se lotada pela tarde. Mesmo com a acusação de ser um maldito cristão, o antigo califa ainda permanecia como um ícone, muitos não concordavam com o que estava acontecendo.
A multidão se aglomerava e continuava a crescer.
– Isso é um pesadelo. – comentou um dos guerreiros ao meu lado, seu nome era Omã.
– Apenas se mantenha em posição, Omã. – respondi. – É um plano arriscado, mas vai funcionar.
– É melhor dar certo. – respondeu ele. – Eu não vou ver esse homem sofrendo um julgamento injusto. Não ele...
Quantos anos nós tínhamos quando tivemos as primeiras notícias sobre Hamam iben El-Hashid? Omã deveria ter uns sete, eu, uns três anos. Parece que tivemos notícias dele por toda a nossa vida. Anos mais tarde, viemos a servi-lo, embebidos pelas suas histórias, dominados por sua postura e sabedoria. Também éramos guerreiros. Ele, estranhamente, precisava de tais homens, e os seus ensinamentos eram melhores do que qualquer paga.
Seria difícil entender se não o tivesse visto cara-a-cara, assistindo-o em suas atitudes e ações, foi revelador. E entendi porque aquele general daquela “velha história”, o havia escolhido. Porque, ainda que fosse um antigo soldado, quase no auge de sua decrepitude, podia-se quase sentir a bondade por trás daqueles olhos endurecidos pela guerra e pela idade. Ele havia lutado nos piores dias do século e ainda assim era o homem mais decente que se poderia encontrar.
– Onde está Abbas? – era Omã.
– Abbas? – respondi procurando com os olhos. – Sim, eu posso vê-lo, está embrenhado em meio ao povo da praça.
– Fiquemos prontos para seguir em sua direção. – concluiu. – Isso pode ficar complicado.
– Sem problemas, Omã, apenas esteja pronto quando ele chegar ao nosso alcance.
– Eles desconfiam de nós, Abd.
– Desconfiem à vontade. Eu...
Não pude continuar.
– Maldição...
Eles haviam chegado. E estavam exibindo o antigo califa como um delinqüente qualquer, como se esquecessem tudo que ele havia feito por nós. Como poderiam esquecer? Antes de conhecê-lo, aquele homem já era uma lenda. Sua idade, mesmo nos dias de hoje, não impedia ninguém de se impressionar com a sua postura e a sua sabedoria. Demorei semanas para me acostumar com a ideia de ser considerado por ele como um igual. Mas, antes que eu percebesse, éramos irmãos. Eu sabia que nunca teria aquela benevolência, aquela dignidade sob pressão, ou aquela força em face ao horror.

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