Foi assim que eu a conheci há mais de setenta anos. Ela me olhou
profundamente. Seu corpo era esguio, ágil e leve. Sua pele morena e
suave, as mãos, que seguravam meu pescoço e minha nuca, firmes. Os
braços compridos e fortes. As pernas também fortes, as ancas
discretas. Cabelos curtos e castanhos. Os pequenos seios comprimiam
meu peito. Olhei diretamente em seus olhos. Eram negros como a noite.
Nunca havia visto olhos de um tão belo negror. De sua boca, onde
dentes alvos e perfeitos sorriam ironicamente para mim, exalava um
aroma de morangos silvestres. Seu corpo tinha o cheiro do mato
molhado que, na fazenda de meu pai, tanto alimentava meus sonhos
infantis.
- Vale a pena deixar que você morra em meus braços? ela me
perguntou com sua voz grave, mas com uma docilidade infantil.
Eu não conseguia pronunciar uma palavra sequer. Fiquei extasiado com
a beleza daquele ser misterioso. Ela me largou e se ergueu agilmente.
Levantei-me também e, num gesto ousado, segurei-a pelo braço.
- Quem é você? consegui perguntar.
Ela me olhou como um felino. Desvencilhou-se de mim, mas eu tornei a
segurá-la.
- Me solte! ela ordenou.
- Então, me diga quem você é. insisti, largando seu braço. Ela
caminhou até a janela, e eu pensei que iria fugir. – Por favor.
pedi. – Me diga quem você é.
Ela tornou a me olhar, veio até mim e me abraçou. Disse-me:
- Sua vida não existe. O que você faz é arrastar-se por este mundo
ilusório. Mas você pode viver novamente.
Neste momento, ela me deu um beijo ardente no rosto e depois na boca.
Apertei-a fortemente. Nunca tinha sido beijado daquela forma.
Foguetes estouraram, gritos animados explodiram, pois chegara o novo
ano. Não sei quanto tempo se passou, mas ouvi que algumas pessoas
estavam vindo ao nosso encontro. Ela abriu os olhos negros. Quando
nossos corpos se separaram, ela tornou a caminhar até a janela.
- Não vá. tornei. Apontei para o cadáver da donzela, estendido no
outro cômodo. – Eu posso dar um jeito nisso.
Ela sorriu para mim.
- Você está tão morto quanto ela. disse. – Mas você pode viver
novamente. E quando for morrer de verdade, virei te buscar.
Terminando de dizer estar palavras, saltou pela janela. Fiquei
desesperado, imaginando que se suicidara. Estávamos quase no terraço
do grande hotel. Mas, quando cheguei à janela, eu a vi voando...
Sim, voando ela fez um rápido vôo contra a claridade da lua e
desapareceu no manto da noite.
Gritos me despertaram de meu torpor. Acharam o corpo da donzela, as
pessoas outrora alegres pela chegada do novo ano, estavam aterradas.
Fui forçado a responder uma série de perguntas. Fui conduzido à
delegacia, tive que lá voltar várias vezes, mas após algumas
semanas minha inocência foi comprovada e me deixaram em paz.
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