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10 julho 2013

O Cavaleiro Verde (Parte 3)

Na manhã seguinte, bastante antes do amanhecer, todo o pessoal do castelo levantou-se, selou seus cavalos e amarrou os alforjes. O próprio nobre castelão preparou-se para a montaria, comeu rapidamente um bocado, e foi para a missa. Antes que clareasse o dia, èle e seus homens estavam a cavalo. Depois, os cães de caça foram chamados e emparelhados, três notas curtas foram sopradas nas trombetas, e cem caçadores seguiram para a caça. Para os seus postos dirigiram-se os espreitadores de gamos, os cães foram largados, e a caça começou, jubilosamente.
Alvoroçados pelo clamor, os gamos correram para as alturas, mas depressa foram forçados a retroceder. Permitiam que os veados e os cervos passassem, mas as cervas e corças eram obrigadas a recuar para a sombra. Ao correrem velozmente eram alvejadas pelas flechas dos arqueiros. Os cães e os caçadores, aos altos gritos, seguiam-nas, e as que escapavam às flechas eram mortas pelos cães. O senhor prosseguiu alegremente na caçada que durou até a aproximação da noite.
Durante todo esse tempo, Sir Gawayne tinha estado na cama, e só acordou ao ouvir os ladridos dos cães de caça, tornando a dormitar. Finalmente, sentiu que lhe batiam à porta, e um donzel entrou, pedindo-lhe que se levantasse e viesse fazer a refeição com sua senhora. Imediatamente êle se levantou, vestiu-se, colocou o belo anel em seu dedo, o anel que seu hospedeiro lhe dera, e desceu para cumprimentar a castelã.

— Bom dia, belo senhor, — disse ela, — vejo que gosta de dormir até tarde!
Isso disse ela, com um olhar risonho, como se realmente duvidasse ser aquele o Sir Gawayne que todo o mundo reverenciava, já que êle gostava mais ae dormir do que de caçar na floresta, com os cavaleiros, ou conversar com as damas, em suas saletas particulares.
— Para ser sincero, — respondeu Sir Gawayne, — a não ser este anel que tenho no dedo, nada há que eu deixasse de oferecer como penhor de meus serviços e de tua cortesia.
A senhora disse-lhe que se a verdadeira cortesia estivesse instalada nele próprio, nada conservaria êle — não, nem mesmo um anel! Mas Sir Gawayne lembrou a si próprio a palavra que dera ao castelão e também sua promessa ao Cavaleiro Verde. Disse que não podia entregar aquele anel, mas seria, para sempre, um verdadeiro servidor da castelã.
Deixemos agora Sir Gawayne e a senhora, e voltemos a contar como o senhor da terra e seus homens terminaram a caçada na floresta e na charneca. Dos mortos fizeram uma "presa" e começaram a esquartejar as corças, retirando a ordura e arrancando o couro. Quando tudo ficou pronto, eram comida aos cães e dirigiram-se para o castelo.
Imediatamente, ouvindo-os aproximarem-se, Sir Gawayne foi ao encontro de seu hospedeiro. Então, o senhor mandou que todo o pessoal se reunisse e o resultado da caça fosse trazido diante dele. Chamou Gawayne e perguntou–lhe se não merecia louvores pelo seu sucesso venatório. Quando o cavale«»o disse que jamais vira no inverno resultado mais brilhante, — não, naqueles últimos sete anos, — seu hospedeiro pediu-lhe que ficasse com tudo, segundo o entendimento havido entre eles na noite anterior. Gawayne, em retribuição, deu-lhe um gracioso beijo, e seu hospedeiro desejou saber se também ele tinha assim tanta fartura em sua terra.
— Ohl — disse Sir Gawayne — não me peças mais do que isto!
Com isso o castelão riu-se e foram todos cear, quando tiveram novos finos manjares, para comer e sobrar. Depois sentaram-se junto da lareira, enquanto serviam o vinho em derredor, e de novo Sir Gawayne e seu hospedeiro reiteraram seu contrato, como acontecera antes, e assim despediram-se, indo cada qual bem depressa para a sua cama.
Mal o relógio batera três vezes, pela madrugada, quando o senhor levantou-se, e, de novo com seus caçadores e trombetas em alto clangor, seguiu para a caça. Os caçadores animaram os cães, que os seguiam pelo faro, quarenta de uma só vez. Chegaram todos juntos ao lado de um rochedo, e procuraram por todos os lados, varejando as moitas. Delas saiu um furioso javali, que no primeiro arranco atirou três dos cães ao chão. Rapidamente, os caçadores se puseram a persegui-lo. Entretanto, êle atacava os cães, fazendo-os uivar e ganir. Os arqueiros atiraram suas setas contra aquele animal selvagem, mas elas perdiam-se, feitas em pedaços. Furiosa com os ataques, voltou-se a fera contra os caçadores. Então, o senhor da terra soprou sua trombeta, e perseguiu o javali.
Durante todo aquele tempo Sir Gawayne tinha estado na cama, como no dia anterior, segundo a promessa que fizera. E outra vez foi chamado quando dormitava, em horas já tardias, pela castelã que se queixava de sua falta de cortesia.
Sir — disse ela — se fosses realmente Sir Gawayne, não poderias ter esquecido o que te <*isinei ontem!
— E que foi? — perguntou êle.
— O que eu te ensinei sobre dar; — disse ela, — e, contudo, não dás o anel, como a cortesia te obrigaria.
— Pobre é o presente — respondeu êle — que não é dado espontaneamente!
Então, a senhora tirou um anel de seu próprio dedo e pediu-lhe que o aceitasse.
— E eu ouvirei de ti — disse ela — algumas histórias de belas damas e de feitos de armas e proezas próprias de verdadeiros cavaleiros.
Sir Gawayne disse que não tinha habilidade para contar tais histórias, que não ficaria com o anel que ela lhe queria dar, mas que seria seu servo para sempre.
Entretanto, o senhor perseguia o javali, que mordera o traseiro dos cães, tirando-lhes pedaços, e fizera com que o mais robusto dos caçadores recuasse. Por fim o animal ficou exausto demais para continuar a correr e entrou no orifício de uma rocha, ao lado de um regato, a boca espumejante. Ninguém ousava aproximar-se dele, tantos tinham sido dilacerados pelas suas presas. O cavaleiro, vendo o javali acuado, desceu de seu cavalo, e tentou atacá-lo com sua espada. O javali atirou-se sobre o homem, que, fazendo boa mira, feriu-o no flanco, deixando que a fera fosse morta pelos cães.
Houve, então, toques de fanfarra e ladridos dos cães de caça. Um dos presentes, hábil nessa classe de trabalhos, começou a preparar o javali, cortando-lhe a cabeça. Deu de comer aos cães, e os dois pedaços da carcaça foram amarrados juntos e pendurados numa estaca. A cabeça do animal veio ser apresentada, então, ao castelão, que se apressou a tomar o caminho dc casa.
Gawayne foi chamado, quando os caçadores voltaram, para receber os despojos, e o senhor das terras manifestou-se prazeroso ao vè-lo. Mostrou-lhe o javali, e falou-lhe no tamanho e na força da fera. Sir Gawayne declarou jamais ter visto animal tão robusto, e, segundo ficara convencionado, recebeu-o de presente. Em retribuição, beijou seu hospedeiro, que disse ser seu hóspede o melhor que já conhecera.
Armaram altas mesas, cobriram-nas com toalhas, e tochas de cera foram acesas. Com muito júbilo e contentamento a ceia foi servida no vestíbulo. Depois de terem ali se divertido longamente, subiram para o aposento do andar superior, onde beberam e discursaram. Por fim, Sir Gawayne pediu licença ao anfitrião para se retirar na manhã seguinte, mas aquele jurou que seria necessário que êle ali ficasse, a fim de se dirigir à Capela Verde na manhã do Ano Novo, bem antes das matinas. Assim, Gawayne consentiu em permanecer ali por mais uma noite, e, tranqüilo e imóvel, dormiu durante todas as suas horas.
Logo pela madrugada o castelão levantou-se, depois da missa comeu um bocado com seus homens, para quebrar o jejum. Montaram todos nos cavalos que os esperavam nos portões do castelo, prontos para a caçada. A manhã mostrava-se clara e glacial quando eles partiram, e os caçadores, dispersados num dos lados do bosque, seguiram os traços de uma raposa, que ia perseguida pelos cães. Viam-na, agora, e atrás dela galopavam, através de muitos bosques, pequenos e intrincados. A raposa acabou por saltar por cima de um maciço de plantas, e tentou escapar aos cães meten-do-se por caminhos escabrosos. Chegou, porém, a um dos postos da caçada, onde foi atacada pelos outros cães. Entretanto, conseguiu escapar-lhes, atirando-se novamente para os bosques. Foi, então, um belo divertimento ouvir os cães e os gritos de animação dos caçadores, que tratavam a raposa de ladra, fazendo-lhe ameaças. Mas ela era astuta e levou-os a extraviarem-se, entre matagais e moitas.
Entretanto, Sir Gawayne, que fora deixado em casa, dormia profundamente, em seu leito de belos cortinados. Por fim, a castelã, vestida com um rico manto, veio ao quarto dele, abriu uma janela, e repreendeu-o:
— Ah! homem! como podes dormir quando a manhã está tão clara?
Sir Gawayne, quando foi assim acordado em sobressalto por ela, estava sonhando com sua próxima aventura na Capela Verde, mas levantou-se e cumprimentou a linda visitante. Ainda uma vez, como já fizera antes, ela quis receber algum presente através do qual pudesse recordá-lo quando o cavaleiro tivesse partido.
— Vamos, senhor, — insistia ela, — agora, antes de partir, faze-me esta cortesia.
Sir Gawayne disse-lhe que ela era digna de dádiva muito maior do que a que êle poderia fazer-lhe, pois não trazia consigo homem algum portando malas cheias de coisas preciosas.
Conseqüentemente, de novo a castelã ofereceu-lhe um anel de ouro, mas êle recusou-se a aceitá-lo, já que nada tinha para livremente oferecer-lhe em retribuição. Muito tristonha mostrou-se ela com aquela recusa, e, retirando o cinto verde que trazia, rogou-lhe que o recebesse. Gawayne recusou aceitar fosse o que fosse, mas prometeu que "no calor ou no frio, seria seu fiel servo".
— Recusas este cinto por ser muito simples? — disse a dama. — Quem conhece as virtudes que êle possui dá-lhe um alto valor. Porque quem usar este cinto não poderá ser ferido nem morto.
Ouvindo aquilo, Sir Gawayne pensou em sua aventura na Capela Verde, e quando a dama tornou a insistir para que êle aceitasse o cinto, não só consentiu cm recebê-lo, como também em manter a posse em segredo. Então, ela despediu-se. Gawayne escondeu o cinto, e em seguida apressou-se a ir para a capela, onde pediu perdão pelos delitos que porventura houvesse cometido. Quando voltou ao vestíbulo mostrou-se muito alegre junto das damas, com graciosas canções e toadas, a ponto de dizerem elas:
— Este cavaleiro nunca esteve tão alegre até hoje, desde que veio para o castelo!
Entretanto, o castelão ainda estava no campo, onde já matara a raposa. Observara-a vindo através de um bosque espesso e tentara atingi-la com sua espada, mas a raposa fora agarrada por um dos cães. O resto dos caçadores adiantava-se apressadamente, com muitas trombetas, pois aquele era o mais alegre dos encontros que já tinham ouvido. E levando a pele e a cauda da raposa, voltaram para casa todos eles. O senhor desmonta, por fim, em seu lar querido, onde encontrou Sir Gawayne divertindo as damas. O cavaleiro adiantou-se para êle, dando as boas-vindas ao seu hospedeiro, e, segundo o convencionado, beijando-o três vezes.
— Por minha fé! — disse o outro. — Fôste muitíssimo feliz! Eu cacei o dia inteiro e nada mais trouxe além da pele desta raposa imunda, pobre retribuição para três beijos como esses.
Contou-lhe, então, como a raposa fora morta. E com muito júbilo e o concurso dos menestréis, divertiram-se até a hora de se separarem. Gawayne despediu-se de seu anfitrião, agradecendo-lhe a esplêndida estada. Pediu um homem que lhe ensinasse o caminho para a Capela Verde, e deram-lhe um servo. Despediu-se das damas, beijando-as, tristonho, enquanto elas o encomendavam a Cristo. Retirou-se, então, agradecendo a todos pelos seus serviços e brandura de trato. Recolheu-se para repousar, mas pouco dormiu, pois precisava penlar muito no dia seguinte. Deixemo-lo ali deitado, imóvel por algum tempo, e eu vos contarei o que lhe aconteceu depois.

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