Na manhã seguinte, bastante antes do amanhecer, todo o pessoal do
castelo levantou-se, selou seus cavalos e amarrou os alforjes. O
próprio nobre castelão preparou-se para a montaria, comeu rapidamente
um bocado, e foi para a missa. Antes que clareasse o dia, èle e seus
homens estavam a cavalo. Depois, os cães de caça foram chamados e
emparelhados, três notas curtas foram sopradas nas trombetas, e cem
caçadores seguiram para a caça. Para os seus postos dirigiram-se os
espreitadores de gamos, os cães foram largados, e a caça começou,
jubilosamente.
Alvoroçados pelo clamor, os gamos correram para as alturas, mas
depressa foram forçados a retroceder. Permitiam que os veados e os
cervos passassem, mas as cervas e corças eram obrigadas a recuar para a
sombra. Ao correrem velozmente eram alvejadas pelas flechas dos
arqueiros. Os cães e os caçadores, aos altos gritos, seguiam-nas, e as
que escapavam às flechas eram mortas pelos cães. O senhor prosseguiu
alegremente na caçada que durou até a aproximação da noite.
Durante todo esse tempo, Sir Gawayne tinha estado na cama, e só
acordou ao ouvir os ladridos dos cães de caça, tornando a dormitar.
Finalmente, sentiu que lhe batiam à porta, e um donzel entrou,
pedindo-lhe que se levantasse e viesse fazer a refeição com sua
senhora. Imediatamente êle se levantou, vestiu-se, colocou o belo anel
em seu dedo, o anel que seu hospedeiro lhe dera, e desceu para
cumprimentar a castelã.
Isso disse ela, com um olhar risonho, como se realmente duvidasse
ser aquele o Sir Gawayne que todo o mundo reverenciava, já que êle
gostava mais ae dormir do que de caçar na floresta, com os cavaleiros,
ou conversar com as damas, em suas saletas particulares.
— Para ser sincero, — respondeu Sir Gawayne, — a não ser este anel
que tenho no dedo, nada há que eu deixasse de oferecer como penhor de
meus serviços e de tua cortesia.
A senhora disse-lhe que se a verdadeira cortesia estivesse
instalada nele próprio, nada conservaria êle — não, nem mesmo um anel!
Mas Sir Gawayne lembrou a si próprio a palavra que dera ao castelão e
também sua promessa ao Cavaleiro Verde. Disse que não podia entregar
aquele anel, mas seria, para sempre, um verdadeiro servidor da
castelã.
Deixemos agora Sir Gawayne e a senhora, e voltemos a contar como o
senhor da terra e seus homens terminaram a caçada na floresta e na
charneca. Dos mortos fizeram uma "presa" e começaram a esquartejar
as corças, retirando a ordura e arrancando o couro. Quando tudo
ficou pronto, eram comida aos cães e dirigiram-se para o castelo.
Imediatamente, ouvindo-os aproximarem-se, Sir Gawayne foi ao
encontro de seu hospedeiro. Então, o senhor mandou que todo o pessoal
se reunisse e o resultado da caça fosse trazido diante dele. Chamou
Gawayne e perguntou–lhe se não merecia louvores pelo seu sucesso
venatório. Quando o cavale«»o disse que jamais vira no inverno
resultado mais brilhante, — não, naqueles últimos sete anos, — seu
hospedeiro pediu-lhe que ficasse com tudo, segundo o entendimento havido
entre eles na noite anterior. Gawayne, em retribuição, deu-lhe um
gracioso beijo, e seu hospedeiro desejou saber se também ele tinha assim
tanta fartura em sua terra.
— Ohl — disse Sir Gawayne — não me peças mais do que isto!
Com isso o castelão riu-se e foram todos cear, quando tiveram novos
finos manjares, para comer e sobrar. Depois sentaram-se junto da
lareira, enquanto serviam o vinho em derredor, e de novo Sir Gawayne e
seu hospedeiro reiteraram seu contrato, como acontecera antes, e
assim despediram-se, indo cada qual bem depressa para a sua cama.
Mal o relógio batera três vezes, pela madrugada, quando o senhor
levantou-se, e, de novo com seus caçadores e trombetas em alto
clangor, seguiu para a caça. Os caçadores animaram os cães, que os
seguiam pelo faro, quarenta de uma só vez. Chegaram todos juntos ao
lado de um rochedo, e procuraram por todos os lados, varejando as
moitas. Delas saiu um furioso javali, que no primeiro arranco atirou
três dos cães ao chão. Rapidamente, os caçadores se puseram a
persegui-lo. Entretanto, êle atacava os cães, fazendo-os uivar e ganir.
Os arqueiros atiraram suas setas contra aquele animal selvagem, mas
elas perdiam-se, feitas em pedaços. Furiosa com os ataques, voltou-se a
fera contra os caçadores. Então, o senhor da terra soprou sua
trombeta, e perseguiu o javali.
Durante todo aquele tempo Sir Gawayne tinha estado na cama, como no
dia anterior, segundo a promessa que fizera. E outra vez foi chamado
quando dormitava, em horas já tardias, pela castelã que se queixava de
sua falta de cortesia.
— Sir — disse ela — se fosses realmente Sir Gawayne, não poderias ter esquecido o que te <*isinei ontem!
— E que foi? — perguntou êle.
— O que eu te ensinei sobre dar; — disse ela, — e, contudo, não dás o anel, como a cortesia te obrigaria.
— Pobre é o presente — respondeu êle — que não é dado espontaneamente!
Então, a senhora tirou um anel de seu próprio dedo e pediu-lhe que o aceitasse.
— E eu ouvirei de ti — disse ela — algumas histórias de belas damas
e de feitos de armas e proezas próprias de verdadeiros cavaleiros.
Sir Gawayne disse que não tinha habilidade para contar tais
histórias, que não ficaria com o anel que ela lhe queria dar, mas que
seria seu servo para sempre.
Entretanto, o senhor perseguia o javali, que mordera o traseiro dos
cães, tirando-lhes pedaços, e fizera com que o mais robusto dos
caçadores recuasse. Por fim o animal ficou exausto demais para
continuar a correr e entrou no orifício de uma rocha, ao lado de um
regato, a boca espumejante. Ninguém ousava aproximar-se dele, tantos
tinham sido dilacerados pelas suas presas. O cavaleiro, vendo o javali
acuado, desceu de seu cavalo, e tentou atacá-lo com sua espada. O
javali atirou-se sobre o homem, que, fazendo boa mira, feriu-o no
flanco, deixando que a fera fosse morta pelos cães.
Houve, então, toques de fanfarra e ladridos dos cães de caça. Um
dos presentes, hábil nessa classe de trabalhos, começou a preparar o
javali, cortando-lhe a cabeça. Deu de comer aos cães, e os dois
pedaços da carcaça foram amarrados juntos e pendurados numa estaca. A
cabeça do animal veio ser apresentada, então, ao castelão, que se
apressou a tomar o caminho dc casa.
Gawayne foi chamado, quando os caçadores voltaram, para receber os
despojos, e o senhor das terras manifestou-se prazeroso ao vè-lo.
Mostrou-lhe o javali, e falou-lhe no tamanho e na força da fera. Sir
Gawayne declarou jamais ter visto animal tão robusto, e, segundo
ficara convencionado, recebeu-o de presente. Em retribuição, beijou
seu hospedeiro, que disse ser seu hóspede o melhor que já conhecera.
Armaram altas mesas, cobriram-nas com toalhas, e tochas de cera
foram acesas. Com muito júbilo e contentamento a ceia foi servida no
vestíbulo. Depois de terem ali se divertido longamente, subiram para o
aposento do andar superior, onde beberam e discursaram. Por fim, Sir
Gawayne pediu licença ao anfitrião para se retirar na manhã seguinte,
mas aquele jurou que seria necessário que êle ali ficasse, a fim de se
dirigir à Capela Verde na manhã do Ano Novo, bem antes das matinas.
Assim, Gawayne consentiu em permanecer ali por mais uma noite, e,
tranqüilo e imóvel, dormiu durante todas as suas horas.
Logo pela madrugada o castelão levantou-se, depois da missa comeu
um bocado com seus homens, para quebrar o jejum. Montaram todos nos
cavalos que os esperavam nos portões do castelo, prontos para a
caçada. A manhã mostrava-se clara e glacial quando eles partiram, e os
caçadores, dispersados num dos lados do bosque, seguiram os traços de
uma raposa, que ia perseguida pelos cães. Viam-na, agora, e atrás
dela galopavam, através de muitos bosques, pequenos e intrincados. A
raposa acabou por saltar por cima de um maciço de plantas, e tentou
escapar aos cães meten-do-se por caminhos escabrosos. Chegou, porém, a
um dos postos da caçada, onde foi atacada pelos outros cães.
Entretanto, conseguiu escapar-lhes, atirando-se novamente para os
bosques. Foi, então, um belo divertimento ouvir os cães e os gritos de
animação dos caçadores, que tratavam a raposa de ladra, fazendo-lhe
ameaças. Mas ela era astuta e levou-os a extraviarem-se, entre matagais e
moitas.
Entretanto, Sir Gawayne, que fora deixado em casa, dormia
profundamente, em seu leito de belos cortinados. Por fim, a castelã,
vestida com um rico manto, veio ao quarto dele, abriu uma janela, e
repreendeu-o:
— Ah! homem! como podes dormir quando a manhã está tão clara?
Sir Gawayne, quando foi assim acordado em sobressalto por ela,
estava sonhando com sua próxima aventura na Capela Verde, mas
levantou-se e cumprimentou a linda visitante. Ainda uma vez, como já
fizera antes, ela quis receber algum presente através do qual pudesse
recordá-lo quando o cavaleiro tivesse partido.
— Vamos, senhor, — insistia ela, — agora, antes de partir, faze-me esta cortesia.
Sir Gawayne disse-lhe que ela era digna de dádiva muito maior do
que a que êle poderia fazer-lhe, pois não trazia consigo homem algum
portando malas cheias de coisas preciosas.
Conseqüentemente, de novo a castelã ofereceu-lhe um anel de ouro,
mas êle recusou-se a aceitá-lo, já que nada tinha para livremente
oferecer-lhe em retribuição. Muito tristonha mostrou-se ela com aquela
recusa, e, retirando o cinto verde que trazia, rogou-lhe que o
recebesse. Gawayne recusou aceitar fosse o que fosse, mas prometeu que
"no calor ou no frio, seria seu fiel servo".
— Recusas este cinto por ser muito simples? — disse a dama. — Quem
conhece as virtudes que êle possui dá-lhe um alto valor. Porque quem
usar este cinto não poderá ser ferido nem morto.
Ouvindo aquilo, Sir Gawayne pensou em sua aventura na Capela Verde,
e quando a dama tornou a insistir para que êle aceitasse o cinto, não
só consentiu cm recebê-lo, como também em manter a posse em segredo.
Então, ela despediu-se. Gawayne escondeu o cinto, e em seguida
apressou-se a ir para a capela, onde pediu perdão pelos delitos que
porventura houvesse cometido. Quando voltou ao vestíbulo mostrou-se
muito alegre junto das damas, com graciosas canções e toadas, a ponto
de dizerem elas:
— Este cavaleiro nunca esteve tão alegre até hoje, desde que veio para o castelo!
Entretanto, o castelão ainda estava no campo, onde já matara a
raposa. Observara-a vindo através de um bosque espesso e tentara
atingi-la com sua espada, mas a raposa fora agarrada por um dos cães. O
resto dos caçadores adiantava-se apressadamente, com muitas
trombetas, pois aquele era o mais alegre dos encontros que já tinham
ouvido. E levando a pele e a cauda da raposa, voltaram para casa todos
eles. O senhor desmonta, por fim, em seu lar querido, onde encontrou
Sir Gawayne divertindo as damas. O cavaleiro adiantou-se para êle,
dando as boas-vindas ao seu hospedeiro, e, segundo o convencionado,
beijando-o três vezes.
— Por minha fé! — disse o outro. — Fôste muitíssimo feliz! Eu cacei
o dia inteiro e nada mais trouxe além da pele desta raposa imunda,
pobre retribuição para três beijos como esses.
Contou-lhe, então, como a raposa fora morta. E com muito júbilo e o
concurso dos menestréis, divertiram-se até a hora de se separarem.
Gawayne despediu-se de seu anfitrião, agradecendo-lhe a esplêndida
estada. Pediu um homem que lhe ensinasse o caminho para a Capela
Verde, e deram-lhe um servo. Despediu-se das damas, beijando-as,
tristonho, enquanto elas o encomendavam a Cristo. Retirou-se, então,
agradecendo a todos pelos seus serviços e brandura de trato. Recolheu-se
para repousar, mas pouco dormiu, pois precisava penlar muito no dia
seguinte. Deixemo-lo ali deitado, imóvel por algum tempo, e eu vos
contarei o que lhe aconteceu depois.
Nenhum comentário:
Postar um comentário